quarta-feira, 12 de março de 2008

Retorno

Acordou com o barulho do telefone. Não costumava receber ligações naquele horário, no início da manhã. Não podia imaginar quem estaria ligando, nem porquê. Talvez, por isso, apressou-se a atender o chamado.

Levantou-se rapidamente do sofá da sala – havia dormido ali? O apartamento estava vazio — poucos móveis e muitas caixas a serem abertas, quem sabe um dia. Talvez não se lembrasse... O olhar vago, o corpo fraco, a mente perdida, a sala escura e vazia... Novamente o barulho do telefone, que pareceu ter sumido pouco a pouco um instante antes. Era uma criança. Antes de atender já sabia e as palavras pareciam sair de sua boca ainda distante do bucal.

Um choro baixinho, mas doído, indignado, contido na garganta, deixava claro: havia um menino naquele apartamento. De imediato, a cabeça se voltou para a porta entreaberta do quarto ao fundo do corredor apagado. Os passos prosseguiam junto com o olhar cada vez mais focado, discernindo gradualmente detalhes daquele ambiente próximo, à procura de algum movimento.

Foi então que por trás do choro rompeu um ruído: vidro arranhado e o ronronar de um gato na janela. Era isso.

Era Balão. O mesmo gato que um dia pensaram que podia flutuar de tão felpudo e que, por isso, houve uma época em que lhe puxavam muito o rabo, tal qual fosse o cordão que segura um balão de gás, daí o nome. Entreteve-se durante instantes com os movimentos do bicho. Do lado de fora, apenas uma chuva fina, cinza, fria, caía sobre a calçada ainda vazia pelo começo do dia. Respirou. Sentia o vento gelado entrar-lhe às narinas, um arrepio tomava conta do corpo. Ouviu passos na sala.

Abriu os olhos. Correu em direção à porta, chegou ao corredor. Com passos trêmulos, reconhecia aos poucos aqueles quadros na parede — retratos antigos, de pessoas que nunca conhecera, mas que produziam sobre ele uma impressão de respeito e altivez muito maior do que já pôde sentir pelas pessoas que passaram por sua vida. Relíquias de família, tinha certeza de que haviam se perdido entre tantos objetos deixados na antiga casa do padrasto, muitos anos atrás. Passado abandonado, ele retornava agora para presenciar o abandono do presente.

Escutou os passos cada vez mais perto. Por detrás, sentiu o menino atravessar o corredor em direção ao quarto. O menino caminhava lentamente e cada passo demonstrava um peso, um abandono indiferente tão grande... Caminhava com um movimento impecavelmente regular, repetindo a cada passo a mesma energia, a mesma postura, os mesmos gestos. Uma mesmice diferente daquela própria de todas as caminhadas; resultantes sempre da soma de movimentos muito semelhantes, mas que nunca são iguais, apenas na aparência: cada passo torna-se único pelo acontecimento ou não de um suspiro breve, pela marca de um dado olhar, movimento de cabeça, ou mesmo dos dedos da mão. Há sempre um detalhe a mostrar que a vida não cessa e que o que é vivo se mostra sempre, a cada instante, de um jeito diferente, ainda que mínimo, pois nunca deixa de reagir ao ambiente das coisas, de fora ou de dentro. Pois, o caminhar daquele menino dizia exatamente o contrário. Era dono de uma mesmice inerte, morta.

Era o mesmo caminhar de quando Balão foi embora sem porquê. Soube apenas que um dia deixaram a janela aberta e o gato, tal qual o nome, foi-se, seguindo a corrente de ar que saía à rua, que dava pro vento, que dava pra mais lugares ainda, menos pra casa. Era o mesmo caminhar de seu filho, no dia em que a separação tornou-se assunto público e certo. Seu filho indo para o quarto, em direção à janela, talvez para ver a rua, talvez para mais lugares ainda.

Era sempre o mesmo caminhar. Mas, os seus meninos já não havia mais. Um cresceu, o outro se mudara. Ainda assim, tinha um menino naquela casa.

Olhou para a porta do quarto. Sabia que seu movimento natural seria seguir pelo caminho oposto, sair dali. Essa foi sempre a sua escolha, desde que, ainda jovem, deixou a mãe, os irmãos e o padrasto. Foi também pela 'escolha' que, em outra época, havia se trancado naquele apartamento. Não precisaria mais de ninguém. Não precisava de respostas.

Mas era diferente dessa vez. Tinha que encontrar o menino, saber quem ele era, o que estava fazendo. Seguiu então pelo corredor, notou que não havia mais quadros na parede, a casa estava em sua perfeita ordem. Chegou ao quarto. No cômodo quase vazio, apenas uma cama desarrumada e algumas caixas fechadas. Olhou cuidadosamente ao redor, não havia nada.

Sentou-se. Da janela, um pequeno feixe de luz iluminava e aquecia seu corpo, a chuva já havia cessado, assim como talvez as más lembranças teriam ido embora. Talvez fosse o momento de sair. Estava concentrado, quando um novo ruído o despertou, doce, fraco, suplicante — era o ronronar de Balão, que estava ao pé da cama e saiu em direção ao corredor para não mais voltar, ele sabia. Sabia também que, como o gato, o menino também estava naquele quarto. Debaixo da cama? Agachou-se, deitou o corpo no chão, estendeu o braço. Restava apenas puxar o lençol, com um movimento.

Acordou com o barulho do telefone.

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