sexta-feira, 9 de maio de 2008

Realidade

Monstros têm vida. Bastava um transtorno qualquer, um tropeço, um não, uma desavença, um erro, um imprevisto. Transformava-se nesses dragões que guardam toda a fúria e mais um pouco dela.

As unhas infindáveis começavam a brotar e crescer em direção ao meu pescoço, os olhos eram pintados do mais rubro vermelho, a pele secava até ser escama, dentes mal cabiam na boca, aquela baba amarelada pingava sobre a minha testa, o rabo realizava movimentos cortantes contínuos como se fosse possível esmiuçar o ar em quebra-cabeça, as baforadas faziam tudo ser inferno, o mais ardente, e que mesmo assim arrepia. Diante dele, dragão, em mim só cabia medo.

Uma vez reuni num sopro toda a paz e mais um pouco dela, na vontade de congelar perversidades, paralisar crueldades e fazer com que ele deixasse de ser monstro e voltasse a ser gente, simples. Deu certo. Mas teve um dia, ainda criança, que meu sopro falhou.
Mais cedo ou mais tarde isso aconteceria. Já se sabia... Como? “A mesma mão que afaga é aquela que apedreja." E eu tão jovem... Acho que qualquer idade seria jovem demais para aprender de tal forma o real significado da maldade.

“O verdadeiro mal é sem idade, é sem tempo ou espaço. O verdadeiro mal acontece como que num universo paralelo, invisível enquanto é. Talvez, por isso, ninguém tenha visto quando seu corpo violado foi carregado escada acima. Ninguém viu porque o mal não tem futuro; ninguém quer admiti-lo, por isso é imprevisível. Pelo mesmo motivo é sem presente. O verdadeiro mal só tem passado. Suas formas estão no pesadelo e no horror das lembranças do acontecido que não podia ser.”

Com essas palavras confusas, o anjo triste tentava embriagar os meus sentidos e me fazer esquecer da dor, do ódio e, talvez, do medo. Mas era difícil escutar o acalento, que se apagava diante do choro das outras crianças e dos gritos de horror que invadiam a casa. Em pouco tempo, meu sangue – o mesmo que há pouco, num encontro inesperado com um vaga-lume, havia feito o coração pulsar de alegria – tingiu tudo de vermelho. Foi quando descobri que marcas de sangue não se apagam, elas cicatrizam.

“A cicatriz é a deformidade de nós mesmos. É algo que foge do curso e que, por isso mesmo, é diferente. São linhas, perfurações, rasgos que se preenchem de um passado doloroso, de lembranças. O detalhe é que a cicatriz não é uma só. Pode ser impressa na pele, mas também apenas na alma. A pior sentença de um homem é ter de conviver com a cicatriz de um erro. Marcas de sangue não se apagam.”

Conseguia agora ouvir melhor as palavras do anjo, ele estava cada vez mais próximo e narrava em palavras doces a minha história. História tantas vezes contada depois pelas ruas, nas bancas de revista, na televisão em horário nobre, tal qual novela. Todo dia um detalhe novo para a mesma pergunta.

Confesso que fechei os olhos para não ver a cara do assassino, ou então simplesmente apaguei da memória a face daquele crime. Diante do abandono do corpo no ar, jogado de encontro à terra, ainda vivo, será que fundamentalmente importa mesmo é o pai, e não o humano? O rosto e não a mão? A razão e não o sentimento?

Na queda aprendi tanto sobre a imobilidade, no ar aprendi tanto sobre a terra, o chão firme. "Na dor tanto sobre a miséria, e nela talvez um pouco sobre a luz", me diz ele, que acarinha os meus cabelos e tenta fazer com que a vertigem passe e eu me encontre de novo em mim.
É o anjo também quem me ensina que toda história é feita de versões: a dos outros, a deles, a minha. E quero que a minha versão seja construída de perdão e de agradecimento. Perdôo por razões simples. A raiva me faz mal e o perdão me faz bem. Agradeço por várias razões.
Obrigada por ter feito com que eu me livrasse de você e de mais momentos de terror. Obrigada por ter me apresentado à liberdade, naquela mesma hora em que soltou minhas mãos. No meu vôo em direção a esse outro plano, conheci o sentido real da liberdade. Ela é fluida, tem o peso da queda livre e faz com que um corpo seja apenas um corpo. A vida vai além. Transpõe ossos, órgãos, tecidos, asfalto, nuvens, galáxias e chega até aqui.

“A liberdade é feita de asas. Poucos são os que conseguem vesti-las. Há de se ter um bom coração." Assim, o anjo explica a novidade em minhas costas.

Ele então pega a minha mão e me guia por um caminho que me leva para longe da dor. Mas, basta que eu feche os olhos e revejo tudo com as impressões mais intensas, como se vivesse cada momento de novo, mas sempre diferente. Entre as imagens, vejo a figura daquela mulher que, sob os olhos de todos, representa hoje o retrato da agonia. Me tranqüiliza saber que ela também, com o tempo, vai descobrir o poder de vencer as distâncias e, com um fechar de olhos, me buscar nos sonhos.

Uma tristeza, porém, vem de repente e me interrompe o avanço. Lembro que sou também um terrível fantasma. Olho para trás e vejo ele que me olha aterrorizado e desesperadamente se disfarça, procurando rechaçar a condenação dos outros olhares e os olhos da própria justiça. Olho-o e me pergunto quando.

“A esperança é uma eterna possibilidade."