quarta-feira, 30 de abril de 2008

Caminho de casa

Olha lá, a Dona Angélica chegou. Achei que hoje ela não entraria neste ponto, afinal é quinta-feira, quando ela costuma sair mais cedo do trabalho. É o dia de fazer as unhas, dois quarteirões acima da biblioteca, onde então toma o ônibus. Pela sua cara, teve que fazer algum trabalho urgente para o chefe e não pôde cumprir sua rotina. Vai se sentar ao lado do Pedro, que também não está com cara de muitos amigos. Acho que está quase desistindo da faculdade, quer mesmo é trabalhar com um táxi. Olha só como ele observa a fila de motoristas parada ali na esquina!

Até agora ninguém se sentou comigo... Já vi tudo. Vou ter que agüentar o Marquinho, aquele mauricinho que volta pra casa, depois do cursinho de inglês, ouvindo músicas no maior volume. Não disse, lá vem ele... Mas que estranho, ele está sem os fones de ouvido e parece tão triste... E olha lá, se sentou com a Clara, que, tenho certeza, não viveu nada de extraordinário hoje. A vida da Clara é como o nome, pálida.

Todos os dias, sei que vou encontrá-la neste mesmo horário, pouco antes de o ônibus passar. É ela sempre a última a se levantar do banco da rua, enquanto todos os passageiros se digladiam para entrar no veículo. Ela não, parece não ter pressa. Entra e senta calmamente, e fica a viagem toda olhando para a janela, sem conversar com ninguém. A monotonia é tanta, que nunca descobri em qual ponto ela desce! Até tento reparar nas suas ações (ou na ausência delas) e, sem querer, me distraio com outra coisa... E aí, meu bem, já é tarde, ela já foi embora para sua vidinha morna. Clara, sim, não há outro nome para ela.

Achei que eu fosse ficar sozinha, mas não, vou ter que aturar o Seu Bebeto, que acabou de passar a roleta. Esse aí eu conheço. Vive puxando assunto com quem quer que esteja ao lado, na frente, até com o trocador... Comigo, a conversa é a mesma: “Ouviste falar em veranico?” Não, na primeira vez, eu realmente não fazia idéia. Mas, na maioria das vezes, eu balanço a cabeça e abro um sorriso simpático, de quem está muito curiosa por saber sobre esse “fenômeno climático de estiagem, responsável por esse calor do cão!” “Calor-do-cão”, ele repete, antes mostrar os dentes amarelos com uma risada maliciosa, de quem tem muito a ensinar para moças jovens e inocentes, como eu.

Decidi que seria “Seu Bebeto” hoje. Antes eu o chamava de Seu Jorge, mas depois daquele cantor, fica difícil criar uma vida de velho galanteador de jovenzinhas. Bebeto não, Bebeto combina... Enquanto penso nisso e rio das minhas invenções, ele continua a reclamar da temperatura. Mas são só alguns minutos, logo ele se vira para outra pessoa. Seu Bebeto faz muita questão de novas amizades.

Na minha frente, senta um casal de namorados. Muito agarrados, eles falam baixinho e se beijam calorosamente — daqueles beijos bem estalados que me dão arrepios só de ouvir. Do reflexo da janela, posso ver o rosto deles, ela com a cabeça no ombro do rapaz, com um sorriso imenso e constante, como se nela não coubesse tanta felicidade. Isso transbordava em seu olhar, perdido em todos os lugares, sem alcançar nenhum. Deve ser namoro recente, quem sabe o primeiro amor...

Sim, era o primeiro amor. E Ana, como ela se chama, parece ser o tipo que acredita no príncipe encantado, no amor para toda a vida. Logo se vê, pelo cabelo comprido, partido ao meio, e o vestido florido, muito simples. É de uma simplicidade de moça do campo.

Poderia ser Ana, Maria, Márcia ou qualquer nome de gente comum. Mas ele, com certeza, era Cláudio... Um tipo que parece comum e inofensivo à primeira vista, mas no fundo, é prático, obstinado e tem lá suas ambições. Homem simples também, mas que — nem mesmo ele sabe — pode ser capaz das piores crueldades. Como quebrar o coração de uma Ana...

Talvez Marquinho esteja triste porque gosta de Ana e não suporta mais vê-la com Cláudio. Quem sabe uma verdadeira ciranda, em que Bernardo goste de Ana, que gosta de Cláudio, que se interessa por Clara... Mas não, terminaria cedo. Clara não se interessa por ninguém.

O engraçado é que, por mais que eu evite, esse meu quebra-cabeça sempre se volta para minha pálida e silenciosa colega de lotação. Ainda não tive ânimo de inventar sua história, mas ela aparece em todos os meus enredos. Talvez seja isso, o que eu não consigo enxergar, na figura mais difícil de caricaturar dentro deste ônibus. Se eu resolvesse apontar, poderia dar a minha versão para a vida de cada um dos que me acompanham nesta viagem. Mas Clara, não: é tão pálida quanto impenetrável.

Da janela, vejo os carros parados no trânsito pesado do fim de tarde. Algumas pessoas viajam sozinhas. Outras têm companhia e conversam para se distrair. Já outras permanecem inertes, mesmo com outras pessoas ao lado, tomadas pelo cansaço do dia. Ou pelo cansaço do outro, talvez. Meu maior desejo é poder ouvir o que se fala dentro dos carros. Não, não, essa minha mania já está indo longe demais. Só que, com um trânsito desses, sei posso ficar horas e horas inventando histórias com os personagens da vida.

Mas o que é aquilo? Marquinho diz algo e tão perto do ouvido de Clara que, tenho certeza, ela sentiu um arrepio na nuca. Eu senti. É a primeira vez que alguém fala com ela em todo esse tempo. É a primeira vez que Marquinho se dirige a alguém. Será que ela vai responder? O que será que ele disse? Se tivesse apenas perguntado as horas, não seria tão próximo. Se fosse alguma tentativa amorosa, ela reagiria. REAJA! Quando percebi, havia gritado. E todos no ônibus olhavam para mim. Menos ela. Ou não?

Ela vira o rosto para Marquinho, meio que sem entender o que ele conta, depois pára para pensar e... Olha para mim. Olha para mim? Meu Deus! Eu me perco tanto nessas observações de pessoas, que nem mais tenho o cuidado de disfarçar! Viro rapidamente para janela, para despistar... Não adianta. Ela já percebeu minha indiscrição.

De repente, Clara se despede de Marquinho, levanta e vem em minha direção... Vem tirar satisfações! Ai, tá vendo, é isso que dá ficar bisbilhotando a vida dos outros. Mas eu nem faço isso, eu invento histórias, o que é que tem isso? Já tentei ler livros ou ouvir músicas... Mas não dá, as pessoas sempre roubam minha atenção. Como explicar isso para ela agora?

Ela vem até mim, minha barriga gela. Antes que ela pergunte, é melhor falar logo: “Clara... digo, você, eu não sei o seu nome, mas tenho te observado, sei lá, sua vida é tão simples, tão vazia, sabe? Como a minha. É isso, como a minha vida...”

Calo-me angustiada quando vejo que todos me olham, alguns riem, outros sentem pena... Talvez me achem uma “Clara”. Ela, por sua vez, reage diferente: me olha assustada, como quem não entende nada, e sai correndo do ônibus, como... era o que ela queria fazer desde o início...

Depois dessa, melhor sentar e voltar para casa. Mas sem imaginação por hoje.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

(Re)encontro

Posso reconhecer sua risada alta e prolongada do início do corredor. Logo adiante, um feixe de luz denuncia que uma porta está semi-aberta. Outras vozes também parecem vir lá de dentro. Bom saber que você tem companhia e pensar que está feliz. Será que ainda mantém os cabelos longos? Ainda gosta de sorvete de chicletes depois do almoço? Canta Roberto Carlos debaixo do chuveiro? As mínimas coisas me fazem falta, suas piores características.

Às vezes tenho vontade de ver aquele filme com o Tom Cruise, que você me fez alugar tantas vezes, até não suportar mais. Estranho ter saudade dos seus abraços extremamente apertados, das suas conversas intermináveis e cansativas, da sua carência notadamente excessiva. Acho que hoje já não me zangaria se você começasse a contar aquela velha estória pela milésima vez. Talvez até achasse graça.

Ouvi dizer que você agora virou artista e anda fazendo coisas realmente bonitas. Achava mesmo que levava jeito pra arte. Sua forma de ver o mundo sempre foi bastante peculiar. Este quadro, será seu? Acho que não, você costumava preferir as cores mais quentes. "Cores de dias de sol, pra iluminar a vida da gente", dizia.

Me contaram também que anda fazendo do mundo poesia. Não duvido. A caneta sempre foi a extensão de seus dedos. Ao fim de sua clássica e freqüente catarse, já podia prever um papel rabiscado de sentimento e os olhos lacrimejados. E aí, lá vinha você, me puxando pelas mãos até a sala. Eu ficava no sofá, à meia luz, você ocupava todo o espaço, gesticulando desse seu jeito tão seu filosofias acerca da vida.

Eram palavras e questionamentos muito complexos, sempre intensos. Nunca entendi exatamente o que queria dizer. Mesmo assim, achava bonito e me sentia até instigada a mudar em mim algo que eu não sei bem o quê. Sinto saudades. Tanta que dá vontade de sentar neste sofá, que não é bem aquele, e torcer para que saia pelo corredor recitando verdades líricas à sua maneira. Mas, por favor, cuidado com as paredes, aqui elas são tão brancas...

Não deve ser fácil tornar compatíveis o branco e você. A tranqüilidade que a cor traz costuma passar longe do furacão de sentimentos que você é. Talvez aí dentro desse quarto seja diferente, até mais agradável. É certo que há mais cores, só pelo fato de haver gente. Gente como você.

Quanto mais me aproximo da porta, mais as vozes se tornam música, e já posso ouvir toda uma ópera, da qual é protagonista. Te imagino vestida com um tecido longo e solto, bem vermelho. É como acredito que esteja agora. Engraçado. Não consigo te enxergar oito anos mais velha. É como se esperasse encontrar aquela mesma imagem que tenho gravada em minha memória.

Este cheiro... Não me é estranho. Dificilmente conseguiria me lembrar de sua origem exata, mas as sensações que o olfato nos permite reviver são sempre fortes. A impressão é que mistura fragrâncias de vários momentos da gente. Ai, quero encher o peito disso e não deixar escapar nada, só pra ficar assim, sufocada de lembranças boas. Cheiro de mato lá da fazenda, cheiro de baunilha do bolo da Maria, cheiro de madeira daquele baú, cheiro doce de você. Será que ainda é doce?

Só espero que não fique amarga comigo. Naquele dia, sentada dentro do carro, esperei a eternidade para ter coragem de te deixar aqui. Foi preciso que o guarda dissesse que o horário já não permitia mais visitantes. Oito anos desde então. E, se olharmos bem, oito é o infinito de pé. Tempo que levei para apaziguar os meus eus. Queria ter também a capacidade de inventar realidades. Às vezes, é duro estar no mundo.

Olhos fechados, boca calada, ouvidos tampados. Acho que a omissão me ajudou a entender tudo o que aconteceu com você, com a gente. Daqui já te ouço. Não vejo a hora de alcançar a porta pra poder te ver e te falar. É tanta coisa... Difícil me aproximar desse momento pelo qual tanto espero e que, ao mesmo tempo, tanto temo.

Cada passo requer uma coragem que não sei ao certo de onde vem. Também não posso calcular até quando ela virá. Confesso que, em meu caminho até aqui, não foram poucas as vezes em que quis dar meia-volta e fugir desse reencontro – ou melhor, encontro, uma vez que hoje ambas somos necessariamente outras. No entanto, minha consciência e meu coração me levaram a seguir adiante.

Percebo agora um movimento de porta, uma sombra no chão. Hesito e já não consigo identificar minha própria vontade. Quero e não quero que seja você ali. Sinto um frio esquisito, que sobe pelas minhas vértebras e me faz encolher os ombros. Tento aquecer minhas mãos geladas, porque não quero que estejam assim ao encontrar as suas.

Ao erguer a cabeça, me dou conta que já estou no meio do quarto. Giro à sua procura. São muitas cores e sons, quanta gente. Parece que já me conhecem há anos. Mas, que cor é você? Não seria capaz de reconhecê-la? De vestido branco, meu Deus! Você! Como poderia imaginar? Linda! Da varanda do quarto, recitando poesias aos amigos no jardim. Acho que nem imagina que estou bem aqui atrás. Os cabelos continuam compridos, mas tenho certeza que você mudou. Pela voz. Não era tão pacífica.

Você se abaixa em agradecimento ao público, exatamente como fazia após as declamações filosóficas na sala lá de casa. Mas sei que está diferente. As mãos, visivelmente macias, agora carregam rugas. Acompanho cada movimento seu. Está leve. Ao se virar, imediatamente seu olhar se fixou no meu, como se já soubesse que estou aqui. Minhas pernas não respondem, é preciso que você se dirija a mim.

Que abraço bom... Daqueles que chegam a apertar a alma, que não deixam caber ressentimentos, explicações, mágoas. Queria um desse há tempos... Um beijo em cada bochecha. Delícia! Deve ter aprendido isso aqui, né? Está ainda mais doce. Impressionante como sua gargalhada continua a mesma, é excesso que preenche de coisa boa. "Fátima, que alegria te ver!", você diz, terna, exalando vida.
A alegria está em mim. Não sabe como é bom te ver assim, tão feliz, embora eu não me chame Fátima.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Ele podia tudo

...se você deixar o coração bater sem medo.. se você deixar o coração bater sem medo... Claro como nunca foram lidos todos os sinais do instante e no frenesi do tempo que pára sua agitação, levantou o pó da estrada: nuvem cigana. Daria a volta ao mundo, parando em cada esquina, adentrando cada beco, rua, ruela. Queria cobrir a Terra com a poesia de seus pés inquietos. Queria saber era de portas se abrindo, sentir o aroma fresco da gargalhada de todas as crianças, contar os calos nas mãos de cada velho, cada senhora. Delas, de cada moça, menina, mulher, queria o estoque infinito do prazer mais doído. Ver tanto até gastar os olhos, pecar tanto até consumir toda maldade, restando no fim a barba branca, emaranhada de sutilezas. Cantarolar saudações e despedidas, acumulando uma dose tão fatal de saudade, que seu coração um dia simplesmente pararia de bater, distraído com o selo de uma carta antiga. Queria dar a volta ao mundo e voltar pra casa pra colocar a mãe no colo, também o pai, quem quisesse, a família inteira, pra que reconhecessem nele o avô perdido, o bebê a caminho.

Não sabia ao certo a que lugar pertencia, queria restar sempre na lembrança de onde quer que fosse, de quem quer que o visse. Assim também desejava deixar em si a alma dos instantes vividos, numa sofreguidão de quem acreditava ser cada um o melhor momento. Não negava o passado e os desencontros, a infância e as descobertas, as antigas horas e os ensinamentos de cada passo. Mas não podia concentrar-se no que não fosse o presente, o não saber, o ser levado. O resto, que a pele cuidasse de gravar, como fez até agora. Estava decidido, partiria. E para não fazer daquele o momento final, mas apenas um começo bom, não deixaria avisos. Fecharia as janelas da casa imaginando beijos nos rostos queridos, saudando as horas abandonadas das alegrias que ali o trouxeram. Olhando longe, saiu.

Bateu a porta, o pé no chão, e olhou pro lado pra ver o sol que caia atrás das montanhas. No céu, o traçado de algumas estrelas desenhava um mapa de sombras e luzes dançantes. O vento frio anunciava o silvo distante das cidades do litoral. De lá para ‘outro lado’ era um passo. Era sempre um passo. Assim, seria sempre o seu caminho. Pé ante pé, infatigáveis passos maiores do que a perna. Mas, havia ela. Ele sabia que não importasse o tanto de coisas que ele metesse no buraco da sua curiosidade infantil, ele não deixaria nunca de ser sem fim, sobretudo por causa dela. Não importava. Quantas coisas deixaria de contar por causa dela? Era a pergunta que a garota lhe fazia, do outro lado da rua. O som dos carros ruminava uma falta de sentido que se completava no vacilo de sua boca. Mas, e aquela boca?

Estranho como bastava um pedaço de corpo e toda essa distância transformava-se. Se permitisse a recordação da pele fina e rosada daquele sorriso, seu afã de estar longe se esvaía na mesquinhez da necessidade e do apego. Mas era o sorriso mais triste e sublime, a boca mais amarga e amorosa. Era a sua, ainda que não tocada. Era a dona, sempre e mais ausente. Quase conseguia ouvir a música dos passos diminuindo enquanto a apatia do querer crescia, insuportavelmente. Talvez a escolha em sair significasse fuga, talvez a liberdade física fosse desculpa para livrar-se da dependência estúpida, de um amor burguês demais para a sua fé clube da esquina. Pensando assim, parecia ser a escolha final. E num novo relâmpago, tal qual aquele que o tirara de casa, esquecia-se do que o motivara. Só se deu conta disso quando já se encontrava sentado ao meio fio.

‘A gente nunca foge da gente. A gente nunca foge de certas pessoas...’. E ao sorriso que a garota do outro lado da rua agora ostentava, ele respondia com um tapa que, estalando forte na cara ‘da pele fina e rosada’, prometia novos tons de vermelho, um branco de dentes estilhaçados.. a aparência febril de um sorriso amarelo. Bem que poderia ser. A gente pode nunca fugir, mas sempre podemos ir ao encontro do novo. A cada dia o mundo nascia de novo; cada pessoa um novo filme, um novo livro; a cada minuto ele ia ficando mais velho e as lembranças graves mais um minuto presentes em sua vida.. cada vez mais pesadas e ele mal já conseguia movimentar as pernas.. mas era preciso justamente correr, como sempre vira naquelas matérias babacas de jornal da tarde, era preciso correr, perder peso, ficar em forma, elevar o espírito, buscar a felicidade que reside sempre incólume no fundo esperançoso de cada um, o que de tão óbvio até uma criancinha sabe, só não sabe ninguém a qual profundidade exatamente a gente se salva. Não adianta ficar parado, correr, corramos todo, corra o mundo, em forma esse é o novo mandamento das lembranças graves, a cada segundo, bastava mexer alguns músculos na cara e um sorriso estava pronto.. ‘Paciência, meu filho, paciência’, parecia dizer o velho que atravessava a rua e bem que poderia ser ele.

Se você deixar o coração bater, lidos todos os sinais do instante, o pó da estrada: nuvem cigana. Sentir o aroma fresco de cada moça, cantarolar uma dose tão fatal, distraído com o selo de uma carta antiga. Dar a volta ao mundo, voltar pra casa. Deixar em si a alma, do passado e das descobertas. Ser levado, para não fazer daquele o momento final. Saudar as alegrias abandonadas. O traçado do vento frio era sempre um passo. Pé infantil, não deixava nunca de ser sem fim. Do outro lado da rua, aquela boca, necessária e dona. Insuportavelmente, um amor clube da esquina. Sentado ao meio fio, nunca foge de certas pessoas. A pele fina e febril nascia de novo. A gente não se salva, grave a cada segundo.

Abriu de volta as janelas, mas deixou-se ficar na calçada.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Mergulho

E, de repente, todos os sons parecem cessar. Um silêncio tranqüilo e aliviante toma conta da minha mente. O corpo gela, mas pouco a pouco sou acolhida pela imensidão e nela fico – ou sou deixada –, até alcançar o equilíbrio, recuperar a consciência e me largar, rumo a qualquer destino ou direção.

Posso ouvir o movimento da água, que varia de acordo com o meu próprio. Meus olhos estão fechados, mas já consigo ver o azul e as pequenas e numerosas bolhas de ar que buscam velozmente a superfície.

Ouço atentamente o ruído da minha expiração. Tento fazer com que seja mínimo e espaçado. A velocidade das batidas do meu coração acelera quando por baixo dos meus pés não sinto o fim. Deve ser parecida a sensação de voar.

Ganho coragem, abro os olhos. Sinto um ardor progressivo que acaba por fazer encontrarem, em um impulso, as pálpebras superiores e inferiores. Com os músculos do rosto ainda contraídos, vou me acostumando aos poucos com um contato mais demorado entre minha córnea e a água.

Só então reparo à minha volta. A imensidão azul estava mesmo lá, como eu previa. Azul, "a cor do céu sem nuvens" – foi o que eu ouvi uma vez, num desses momentos tão banais em que você joga conversa fora e começa a filosofar sobre o sentido da vida e das coisas. Acho graça.

Enxergo, lá embaixo, vários pontos coloridos, que se movem rapidamente. Nadam unidos, seguindo um caminho não muito regular. Penso em me aproximar, testar a reação deles. Mas, antes de ensaiar qualquer deslocamento, vejo, bem perto, um pequeno peixe azul e reluzente. Sozinho, vem em minha direção.

A princípio, não consigo definir sua forma exata. É como experimentar um problema de visão que nunca tive. Será que os míopes enxergam assim? O peixinho se aproxima e, cada vez mais, consigo perceber os detalhes de suas cores e texturas. Penso na função de cada escama e barbatana, em como seria se eu tivesse nascido peixe. Deve ser incômodo dormir de olhos abertos.

Desvio o olhar, com os pés fincados na areia e a cabeça perdida no infinito daquele azul, tão claro, tão completo, que jamais poderia deixar alcançar a totalidade de suas nuances. Cair no mar é como mergulhar no céu. O seu inverso semelhante.

Vejo a corrente azul se afastar. Percebo o perigo de me perder em pensamentos em meio a um ambiente tão estranho e misterioso. A expiração cada vez mais recorrente me lembra que meu tempo aqui é curto, cada segundo me aproxima do limite. Do meu limite. Recupero a concentração.

Sigo em direção a um coral cor-de-fogo, sei que há ali muitos segredos para se desvendar. Imagino o grande número de vidas que abriga, seres que não conhecem o mundo lá fora, o meu habitat. O oceano é mesmo um universo paralelo, que posso visitar, mas nunca fazer parte dele.

Uma corrente fria passa por mim, à altura dos meus joelhos. Como reflexo, tiro os pés do chão e me encolho, trazendo as pernas dobradas junto ao tronco e abraçando-as. Fecho os olhos e deixo que meu corpo flutue e minhas costas encontrem a superfície.

Deixo-me levar pelo movimento da água, flutuando, e assim fico por alguns instantes, que parecem durar horas. Meu pensamento divaga e eu me sinto tão leve, que posso ir a qualquer lugar que queira em um momento, e, no próximo, estar em outro, por mais distante que seja.

Escuto algo. Um som abafado, vindo de não muito longe. Isso faz com que minha mente volte ao corpo e, aos poucos, tome conhecimento de cada parte dele. Começo a agitar os braços e as pernas. Presto atenção em cada movimento, cada dobra, cada estiramento. É como se, pela primeira vez, eu tivesse seu controle pleno e com ele pudesse fazer o que quisesse.

O barulho torna-se cada vez mais nítido. É provável que seja uma embarcação que se aproxima. Se ela for grande... Uma enorme tensão toma conta de mim. Abro os olhos, mas não posso ver mais de dois metros à frente. É cada vez mais difícil controlar a respiração, que parece implorar por oxigênio.

Lembro-me da primeira vez que entrei no mar. Nunca me arriscava a ir mais longe, tampouco a fazer movimentos bruscos. Achava que o mar era violento. Minha postura era quase sempre estática, a cabeça voltada para a praia, para as outras pessoas. Sentia-me sem proteção. Algo parecido me acontece agora.

Faço de minhas mãos e pés remos e, em movimentos rápidos, empurro a água para trás, com o objetivo de ir adiante. Vejo um vulto escuro e irregular, que reconheço à medida que vou me aproximando. É a mesma rocha de que saltei há pouco.

De repente, quase que involuntariamente, lanço minha cabeça para fora d'água. A luz do sol ofusca a minha vista, que aos poucos se torna nítida. Não há ninguém por perto, só um pequeno pesqueiro que se afasta da praia. Respiro, finalmente, aliviada.

Volto todo o meu corpo para a água. Aliviada? Já não tenho tanta certeza, quando entro novamente naquela imensidão. Mas, às vezes, acho que gosto dessas situações divisoras. O perigo e o medo nos despertam e nos fazem seguir adiante.

Ultrapassando fronteiras - é assim que me sinto agora, a cada passo pensado, cada movimento sentido. Logo a tensão diminui e consigo recuperar a agilidade. Percebo que não há nada a temer.

Penso na vida lá fora. Será a mesma quando eu sair daqui? A cobrança no trabalho, a competição na faculdade, a busca por certezas, respostas e sucesso a qualquer custo. Aqui, não. Poderia ficar no mar para sempre, nunca ficaria entediada.

Liberdade. Acho que é isso que o mar me traz. Mas não seria uma ilusão? Os objetos desfocados, a lentidão dos movimentos, a ausência de som. Não consigo acreditar nas coisas que passam por mim, no que vejo, no que toco. É como se eu estivesse sonhando. Muito fácil me perder nessa ausência de realidade.

Meus movimentos ganham força e tenho vontade de ir cada vez mais longe. Vou me afastando da costa. Meus pés já não podem alcançar o chão.