quarta-feira, 19 de março de 2008

Hipnose

Luiz Cláudio acordava todos os dias, religiosamente, às 06h35 da manhã. Levava seis minutos entre se levantar, escovar os dentes e entrar para o banho, em que sempre gastava exatos oito minutos. Depois de vestir seu uniforme e sapatos em quatro minutos e meio, sentava-se à mesa do café, onde sempre havia bolachas, leite, chá e uma maçã. Claro, com prazo para se alimentar: dez minutos.

Tudo cronometrado, às sete horas, três minutos e meio, saía de casa a caminho do mesmo ponto de ônibus, onde estavam as mesmas pessoas, para tomar a mesma condução. Para ele era um prazer e um conforto avistar os conhecidos rostos, ter certeza de que tudo corria igual. Não que Luiz Cláudio conversasse com alguém ali, mas era bom sabê-lo. Ele então se sentou, no lugar costumeiro. Em 75 segundos o ônibus passaria. Mas não passou.

Luiz olhou para os lados e reparou na expressão tensa das pessoas. Elas pareciam perceber, assim como ele, a crise que se anunciava. Voltou o olhar novamente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros giravam em uma velocidade exorbitante e terminaram por deixá-lo completamente tonto. Fechou os olhos por um momento a fim de se recuperar e piscou várias vezes antes de abri-los de novo.

Quando se sentiu finalmente desperto, tentou ocupar sua visão com alguma paisagem estável e distante. Aproveitou para focalizar o final da rua de onde deveria chegar o veículo esperado. Afinal, se o tempo realmente estivesse passando mais depressa do que de costume – como denunciavam os ponteiros de seu relógio – mais chances existiam de o ônibus estar próximo dali.

Foi nesse contexto que o rapaz avistou uma grande e escura ave que rodeava um dos bueiros daquela rua. Luiz Cláudio nunca tinha visto nada semelhante dentro da cidade. O bípede de cauda longa e arredondada despertou seu interesse de tal forma, que Luiz pôs-se a caminhar em sua direção, aproximou-se e passou alguns minutos imóvel diante da ave, tentando imaginar o que ela procurava lá dentro.

Talvez um pouco fora de si, o rapaz abriu a tampa do bueiro e, sem nenhuma explicação evidente, lá entrou, acompanhando o animal. Entretido com aquela descoberta, Luiz Cláudio nem mais se preocupava com horários. Além disso, temia que acontecesse algo semelhante, ou até pior, à última vez em que consultou as horas. Era tamanho o seu envolvimento, que também nem se importava com o cheiro ruim e a relativa escuridão do lugar. Simplesmente seguia a ave.

E Luiz observava tudo. Estava tomado por uma curiosidade incomum, principalmente para alguém que nunca foi de observar nada além dos ponteiros dos muitos relógios que tinha. Chamava a sua atenção cada entulho deixado no bueiro, a maneira como a água escura corria... Às vezes tinha vontade de tocá-la. Passaram-se horas e Luiz Cláudio continuava caminhando junto ao estranho animal.

Passou por um grande bueiro de onde pôde ver que já estava começando a escurecer lá fora. Foi quando, pela primeira vez, pensou em voltar para casa. Levaria seu relógio de pulso ao conserto e voltaria à sua rotina habitual. Porém, como se percebesse as intenções do rapaz, a ave começou a fazer um barulho estranho e a se mexer de maneira desordenada. Rodopiava tanto, que começou a jogar água em Luiz. Ele se sentiu enojado e ao mesmo tempo encantado, porque teve finalmente oportunidade de sentir a água, sua temperatura e odor. Olhou em volta, escolheu a poça mais funda e se sentou.

Com a água turva, quente e mal cheirosa à altura de seu umbigo, Luiz se divertia como uma criança que faz algo proibido. Na verdade, sentia-se como a Alice na toca do coelho branco de olhos cor-de-rosa que leva um relógio no bolso. Só que, no caso, o dono do túnel era uma ave e o atrasado era ele. Ao fazer tal comparação, Luiz riu alto, o que deixou sua nova amiga extremamente agitada. A ave, que até então esperava pacientemente o descanso de Luiz para seguir caminho, começou a andar em direção à escuridão.

A princípio, Luiz não se moveu, pois estava muito cansado. A luz exterior, já fraca, ainda atravessava os furos da tampa do bueiro, o que lhe permitia enxergar alguns metros de distância. Quando a luminosidade finalmente acabou e Luiz Cláudio já não conseguia avistar o animal, achou prudente levantar-se para procurá-lo. Depois de muitos passos sem nenhum sinal da ave, uma leve preocupação perturbou Luiz, que olhou mecanicamente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros ainda giravam insessante e desordenadamente e provocaram uma nova tontura no rapaz.

Logo que voltou a si, Luiz Cláudio carregava uma sensação nova, de uma asfixia desesperadora. Cambaleante, tentou voltar por onde havia caminhado, mas àquela altura era incapaz de enxergar o que fosse. Estava imerso em um mal cheiroso buraco negro. A absoluta escuridão e o silêncio, apenas interrompido pelo correr da água, angustiavam Luiz Cláudio, que começou a cogitar que aquilo tudo fosse imaginação sua. Talvez nunca tivesse visto o tal animal e tudo não tivesse passado de fantasia. Porém, tudo indicava que estava mesmo ali, encharcado e preso no esgoto de sua cidade. Respirou fundo o quanto pôde e criou coragem para seguir em frente.

Luiz tentava, em vão, abrir a tampa dos bueiros que identificava. Gritava por socorro, mas tudo o que ouvia era um repetido eco que ressoava pelo imenso túnel. Sentou-se, pois, embaixo de um bueiro. A fome e a sede que já o acompanhavam ficaram ainda mais fortes. Para distraí-las, Luiz decidiu cochilar um pouco. Acordou com o som de passos próximos ao local onde estava. Gritou o mais alto que pôde, até que uma senhora de idade – não entendendo bem o que se passava – ligou para os bombeiros, que, em pouco tempo, resgataram o rapaz.

Na manhã seguinte, o movimento habitual em nada fazia lembrar o que se passara no dia anterior. Até mesmo no ponto de ônibus que Luiz Cláudio costumava freqüentar, tudo estava igual. O veículo, que antes deixou a todos esperando, passou no horário exato e o dia seguiu normalmente. Ao cair da noite, com a rua vazia e silenciosa, saltou, de dentro do bueiro, a ave. Saiu, negra e vistosa como antes, e ruidosamente voou para longe dali.

quarta-feira, 12 de março de 2008

História de um pedido

Lembro bem, na época de faculdade, quando as amigas chegavam, com os olhos brilhando, para me mostrar a novidade no dedo. Algumas eram de ouro, outras de prata, mas tinham até aquelas feitas de coco. O sorriso? Ah, era sempre largo, sem fim, desses que revelam sintomas de um amor eterno enquanto dure. Eu não. Nunca tive uma paixão que merecesse tudo isso.

Teve o Marcelo, mas com ele foi só beijo na boca. O Léo... Conheci o Léo na praia. Três dias de sexo intenso. Chegou até a sussurrar “deusa” nos meus ouvidos. Nem gosto muito disso, mas, na carência, a gente até acha bom. Grande amor mesmo foi o Gustavo. Pena ele ter casado com a Lu, minha melhor amiga. Após um namoro de quinze anos, tinha que ser o destino deles mesmo.

É. Fato é que eu, aqui, no auge dos 31 anos, naquela fase em que peitos e bunda estão no limite da gravidade, sempre sonhei em ganhar uma aliança. Dessas bem grandes e douradas. Nem faço questão de brilhantes. Assim, mas, se tivesse, melhor. Nem faço questão de ter o nome grafado. Assim, mas, se tivesse, melhor. Nem precisa ter compromisso sério. Mas, se tivesse...

De uns tempos pra cá, cultivo essa mania besta de sonhar acordada. Vejo desde o momento da escolha dos anéis até o constrangedor pedido familiar, que, no meu caso, virá inevitavelmente carregado de: “Oh! Finalmente!”. “Menina, pensei que nem tinha jeito mais, hein?” Ando até experimentando bijuteiras na frente do espelho. Não é que minha mão recebe bem o enfeite?

Mas como meu lado prático ainda fala alto, decidi resolver a questão objetivamente. Se quero o anel, preciso querer o noivo. Encontrá-lo, encantá-lo, convencê-lo de que sou a mulher certa. Mamãe é que dizia: “Homem não tem medo de casamento, tem medo da mulher errada”. Não sei se acredito nessa balela machista, mas vou por ela.

Ontem comprei um caderno e, desde então, esboço planos que me levem ao altar. Fiz a lista dos candidatos em potencial (como é pequena), dos lugares a ir (como são chatos), das roupas a vestir (não tenho nenhuma). Já logo descartei a possibilidade de uma agência... Há que se ter algo de espontâneo nessa novela.

Algo, não tudo. Por anos embarquei na filosofia do “deixar fluir” e cá estou eu, sem ter nem por onde fluir. De forma fria, se fosse um homem, quem seria a mulher certa? Eu, de certo, não. Sheila Carvalho? Ela é só boa. Marília Gabriela? Só inteligente. Talvez Angelina Jolie. Atriz de sucesso, alma caridosa, adota filhos pelo mundo... Fora o corpo escultural, lábios carnudos sem botox (ou com?), olhos azuis e, pra fechar com chave de ouro, esposa de Brad Pitt.

Sem dúvida, ser esposa do Brad valoriza demais o passe dela. “O que é do homem o bicho não come”, diz o ditado. Mas já outro homem... Homem é invejoso, quer o que é do outro, ainda mais quando o outro é o Brad Pitt. Logo imagino o cara contando pros amigos: “Véi, peguei a gostosa da mulher do Brad Pitt”. Tá aí, já entendi tudo.

Olhos azuis resolvo com lentes, sempre quis usar mesmo. Para ter boca grande, batom vermelho. Corpo escultural, basta uma cinta – mamãe usa várias. Carreira de sucesso, pelo menos, eu tenho. Os filhos? Dispenso. Agora, um sexy symbol do lado... Quem sabe o Paulão? Ele tem experiência em teatro, pode encarnar bem o papel.

Sabe que eu nunca tinha notado como sou boa estrategista? Nada melhor para atrair um homem do que aparecer irresistível... E comprometida! Mais uma da sabedoria popular: “a gente gosta é da grama do vizinho”.

A conversa com Paulão foi como eu pensava:
– Putz, Ana, que ridículo! Não acha que está muito grandinha para sair por aí fingindo um namoro?

– Paulão, pensa comigo: você está solteiro, eu também. A gente adora bater papo, sair a dois é melhor do que essa sua mania de sentar sozinho no boteco e ficar namorando a cerveja.

– Já vi que não adianta argumentar. Na verdade, até vou gostar de passar mais tempo com você.

– Sem essa Paulão, não precisa alisar...

– Boba. Negócio fechado.

Ok. Primeira etapa vencida. A segunda, transformar-me na senhora Pitt, seria até divertido, embora caro. Estica o cabelo daqui, coloca lentes dali, maquiagem para realçar os lábios acolá. Hoje à noite será a primeira investida. Marcamos num forró, nada mais sexualmente instigante.

Paulão já estava na porta, todo soltinho com as garotas. Ao me ver, até foi bom ator. Alisou meus cabelos, beijou-me no canto da boca e disse: “Tá linda, amor!”. Entramos. Escuridão total, não era capaz de reconhecer nem o Paulão. Dançamos três xotes. Nada de flerte. Cinco forrós. Tentei requebrar mais. Sete baiões. Adeus, chapinha. Intervalo para a catuaba. Paulão se afastou, a meu pedido desesperado. Quatro xotes. Ninguém se aproximou. Mais música...

Luzes acesas. Havia apenas eu, Paulão, do outro lado da pista, forrozeando, e alguns casais que fingiam ser dança aquela ralação. Sorri. Por dentro, a solidão me arranhava. Solidão lúcida, doída. Travestida de Angelina, tive vergonha de ser eu. Na mão, nem mesmo um toque afetuoso, quem dirá uma aliança, algum dia. Só, cheguei a casa. Sozinha, permaneci. Ao som de Paulo Ricardo, chorei, só. Angelina diminuída a Ana. Antes só do que mal acompanhado? Odeio ditos populares.

Na frente do espelho, sem anel algum no dedo, fico pensando se quero mesmo ter alguém... Dá trabalho demais essa história de construir e perdoar, de todos os dias, de cultivar a relação. E discuti-la, então? Nesse ponto concordo com a turma dos avessos às análises de casal. Além disso, adoro ficar em casa de moletom rasgado e calcinha de vovó. Tá aí, chega de homens!

A partir de agora, serei apenas eu, e está ótimo. Terei mais tempo para a corrida da manhã, ou terei coragem de não correr e deixar a gravidade seguir seu curso? Poderei ler os livros que gosto, ver filmes iranianos sem ter que assistir ao próximo Rambo para compensar... Além disso, terei muito mais dinheiro para minhas viagens, minhas roupas... Viva a solteirice!

Quem sabe assim, vale aquele “quando a gente não está procurando, é que acha!”? Agora, a aliança... Ah, essa vou nesse minuto mesmo comprar, dessas bem grandes e douradas! E se tiver brilhante, melhor! Meu nome grafado atrás! Huum, vai ficar perfeito!

Retorno

Acordou com o barulho do telefone. Não costumava receber ligações naquele horário, no início da manhã. Não podia imaginar quem estaria ligando, nem porquê. Talvez, por isso, apressou-se a atender o chamado.

Levantou-se rapidamente do sofá da sala – havia dormido ali? O apartamento estava vazio — poucos móveis e muitas caixas a serem abertas, quem sabe um dia. Talvez não se lembrasse... O olhar vago, o corpo fraco, a mente perdida, a sala escura e vazia... Novamente o barulho do telefone, que pareceu ter sumido pouco a pouco um instante antes. Era uma criança. Antes de atender já sabia e as palavras pareciam sair de sua boca ainda distante do bucal.

Um choro baixinho, mas doído, indignado, contido na garganta, deixava claro: havia um menino naquele apartamento. De imediato, a cabeça se voltou para a porta entreaberta do quarto ao fundo do corredor apagado. Os passos prosseguiam junto com o olhar cada vez mais focado, discernindo gradualmente detalhes daquele ambiente próximo, à procura de algum movimento.

Foi então que por trás do choro rompeu um ruído: vidro arranhado e o ronronar de um gato na janela. Era isso.

Era Balão. O mesmo gato que um dia pensaram que podia flutuar de tão felpudo e que, por isso, houve uma época em que lhe puxavam muito o rabo, tal qual fosse o cordão que segura um balão de gás, daí o nome. Entreteve-se durante instantes com os movimentos do bicho. Do lado de fora, apenas uma chuva fina, cinza, fria, caía sobre a calçada ainda vazia pelo começo do dia. Respirou. Sentia o vento gelado entrar-lhe às narinas, um arrepio tomava conta do corpo. Ouviu passos na sala.

Abriu os olhos. Correu em direção à porta, chegou ao corredor. Com passos trêmulos, reconhecia aos poucos aqueles quadros na parede — retratos antigos, de pessoas que nunca conhecera, mas que produziam sobre ele uma impressão de respeito e altivez muito maior do que já pôde sentir pelas pessoas que passaram por sua vida. Relíquias de família, tinha certeza de que haviam se perdido entre tantos objetos deixados na antiga casa do padrasto, muitos anos atrás. Passado abandonado, ele retornava agora para presenciar o abandono do presente.

Escutou os passos cada vez mais perto. Por detrás, sentiu o menino atravessar o corredor em direção ao quarto. O menino caminhava lentamente e cada passo demonstrava um peso, um abandono indiferente tão grande... Caminhava com um movimento impecavelmente regular, repetindo a cada passo a mesma energia, a mesma postura, os mesmos gestos. Uma mesmice diferente daquela própria de todas as caminhadas; resultantes sempre da soma de movimentos muito semelhantes, mas que nunca são iguais, apenas na aparência: cada passo torna-se único pelo acontecimento ou não de um suspiro breve, pela marca de um dado olhar, movimento de cabeça, ou mesmo dos dedos da mão. Há sempre um detalhe a mostrar que a vida não cessa e que o que é vivo se mostra sempre, a cada instante, de um jeito diferente, ainda que mínimo, pois nunca deixa de reagir ao ambiente das coisas, de fora ou de dentro. Pois, o caminhar daquele menino dizia exatamente o contrário. Era dono de uma mesmice inerte, morta.

Era o mesmo caminhar de quando Balão foi embora sem porquê. Soube apenas que um dia deixaram a janela aberta e o gato, tal qual o nome, foi-se, seguindo a corrente de ar que saía à rua, que dava pro vento, que dava pra mais lugares ainda, menos pra casa. Era o mesmo caminhar de seu filho, no dia em que a separação tornou-se assunto público e certo. Seu filho indo para o quarto, em direção à janela, talvez para ver a rua, talvez para mais lugares ainda.

Era sempre o mesmo caminhar. Mas, os seus meninos já não havia mais. Um cresceu, o outro se mudara. Ainda assim, tinha um menino naquela casa.

Olhou para a porta do quarto. Sabia que seu movimento natural seria seguir pelo caminho oposto, sair dali. Essa foi sempre a sua escolha, desde que, ainda jovem, deixou a mãe, os irmãos e o padrasto. Foi também pela 'escolha' que, em outra época, havia se trancado naquele apartamento. Não precisaria mais de ninguém. Não precisava de respostas.

Mas era diferente dessa vez. Tinha que encontrar o menino, saber quem ele era, o que estava fazendo. Seguiu então pelo corredor, notou que não havia mais quadros na parede, a casa estava em sua perfeita ordem. Chegou ao quarto. No cômodo quase vazio, apenas uma cama desarrumada e algumas caixas fechadas. Olhou cuidadosamente ao redor, não havia nada.

Sentou-se. Da janela, um pequeno feixe de luz iluminava e aquecia seu corpo, a chuva já havia cessado, assim como talvez as más lembranças teriam ido embora. Talvez fosse o momento de sair. Estava concentrado, quando um novo ruído o despertou, doce, fraco, suplicante — era o ronronar de Balão, que estava ao pé da cama e saiu em direção ao corredor para não mais voltar, ele sabia. Sabia também que, como o gato, o menino também estava naquele quarto. Debaixo da cama? Agachou-se, deitou o corpo no chão, estendeu o braço. Restava apenas puxar o lençol, com um movimento.

Acordou com o barulho do telefone.

Em busca da verdade interior (Parte 1)

Onde estou? Meu Deus, quantas caixas! Tem de todas as cores! Umas são grandes, outras pequenas, algumas diminuem e aumentam de tamanho até ficarem gigantescas... Ai! Agora estão caindo, me apertando contra outras. Estou sendo esmagada! Socorro! Não tenho para onde fugir... Tudo vai explodir! Aaaaaaaahhhh!

Já era a quinta vez que Sônia tinha esse sonho. Ela é um ratinho no meio de uma confusão de formas geométricas. E pior, tem a impressão de que pensa como um ratinho, seja lá o que isso queira dizer. Em alguns momentos, até tem consciência de que está sonhando, mas, em outros, vem a sensação de que tudo vai explodir a qualquer hora. Desde a primeira vez, achou estranho sonhar com tal coisa, mas nunca tinha parado para refletir sobre o assunto. Porém, nessa noite, ficou especialmente curiosa. Havia de existir alguma explicação para aquilo.

Pegou um livrinho que sua irmã guardava na gaveta de seu criado mudo: Dicionário dos sonhos. Sempre soube que ele estava ali, mas nunca tinha tido vontade de abri-lo antes. Foi direto ao índice. Letra R... Ratazana! Não é bem isso, mas vá lá. Página 323. “A imagem de ratazanas percorrendo túneis pode ser ao mesmo tempo fálica e anal.” Ahn? “Quem sonha pode estar sentindo culpa ou desconforto em relação à sexualidade, ou mesmo uma paixão reprimida.”

Mas como assim? Eu tenho namorado, estamos até pensando em nos casar... Não tenho curiosidades com essa coisa de mulheres, até porque já vi que não gosto. Experimentei duas ou três vezes, sendo que em uma delas eu estava bêbada... Deixa pra lá. E essa coisa de fálica e anal? Credo, deixa o Pedro ouvir isso, vai dizer que tem uma explicação perfeita e um modo de resolver...

Mas e as caixas? Deixa ver... Hum, página 125: “Suas cores querem dizer uma surpresa agradável ou desagradável”. Ótimo, começamos bem. “Abundância se estão cheias, pobrezas se estão vazias”. Mas e se nos comprimem? Não diz... “Se tiver espelhos, nos indica que algo vai acabar bem, ou mal”. Ok, as caixas não significam nada...

Cansada e confusa, Sônia esqueceu o assunto até o fim do dia. Aliás, lembrou só de comentar com uma colega no trabalho que disse que ela devia se cuidar porque é batata, sonhar é um aviso do inconsciente e aprender a explicar os sonhos é mais útil que fazer terapia... Será? Na hora de dormir, Sônia decidiu que ia se concentrar no ratinho, para ver se o sonho se repetia... Adormeceu sem perceber e dessa vez o roedor estava dentro de uma caixa grande, metálica, fria, parecia em movimento... Era um elevador! E estava ficando cada vez mais apertado, as paredes estavam cada vez mais próximas... Droga, vou ser esmagada!

Acordou. Era sempre assim. No clímax da situação, o susto acabava fazendo com que Sônia voltasse à consciência. Olhou as horas, eram duas e dois. Nossa! Que horário mais enigmático para a interrupção do sonho! Sônia se sentia em meio a um monte de informações importantíssimas para o rumo que sua vida iria tomar dali pra frente. Lembrou-se do que havia dito a colega e tratou de anotar tudo o que lembrava do último sonho, com o máximo de detalhes possíveis. De toda forma, precisaria de alguém mais experiente para analisá-los...

Ao pesquisar sobre o assunto na internet, descobriu um site elaborado por ‘analistas de sonhos’, que falava da importância de se deixar um lápis e um bloquinho sempre na cabeceira da cama, além de um abajur, que evitasse a utilização de uma iluminação muito intensa. Tudo isso colaboraria para que as informações não se perdessem até a transcrição completa do sonho. Esse site era mesmo um achado! E mais: fuçando seus diversos links, Sônia acabou encontrando um jeito de enviar seu próprio sonho para ser analisado por eles! Não podia deixar de ficar eufórica...

Foi direto ao assunto: “Olá. Todas as noites me transformo em um rato. E sou perseguida por diferentes objetos. Caixas, elevadores, todos sempre me comprimindo. Preciso de ajuda! Obs.: não tenho problemas com a minha sexualidade. Obrigada.” Ao clicar para que a mensagem fosse enviada, Sônia teve a sensação de estar se desnudando. Aproveitou que estava conectada e foi checar seu e-mail. Quem sabe a perseguição das caixas não tinha causa no volume de mensagens não lidas?

Não se passaram dez minutos desde que Sônia enviara o depoimento, ela voltou ao site. Para sua surpresa e constrangimento, seu texto era o primeiro na página, sem uma única edição. E a resposta era não menos desconcertante. “Sônia precisa lidar com os excessos em sua vida. Ser perseguida e sentir-se inferior ao agressor é estar acuada em suas atividades cotidianas. Ser um rato aponta para um complexo de inferioridade e uma tendência a reprimir seus impulsos sexuais.”

Quantas vezes vou ter que dizer que não tenho problemas com o sexo? Mas, é verdade, andava mesmo oprimida por tantas tarefas. Agora, por exemplo, seu telefone já registrava cinco chamadas não atendidas que, com certeza, eram do escritório de advocacia onde era estagiária.

Academia, estágio, faculdade e aula de canto. Todos os dias eram a mesma coisa. Nos fins de semana, se apresentava junto ao coral de que fazia parte. A vida de Sônia era mesmo muito agitada. Mas a hora do café da manhã era sagrada. Era o momento em que se dava ao luxo de assistir um pouco de televisão, para não ficar completamente alienada do mundo. Afinal, é a mídia quem dita o que é relevante e o que não é. Se estivesse por fora, não teria assunto com ninguém!

Em certa manhã, Sônia estava zapeando quando teve a sorte de parar em um canal num momento decisivo! Um senhor de mais ou menos 60 anos, cabelos brancos, se despedia do telespectador após um programa sobre ‘O sentido da vida’ e terminava, bastante sorridente, com a seguinte chamada: “Tem gente que vive para o trabalho. Não tem outro assunto e não faz outra coisa. E é para essas pessoas que o consultor comportamental promete dar uma força na próxima sexta-feira.” E não era uma pessoa qualquer não! Além de ‘terapeuta’, ele era deputado federal!

Em busca da verdade interior (Parte 2)

Que sorte era ter encontrado aquele programa de TV, aquele site e aquele livrinho da irmã... Tudo se ligava perfeitamente! Que maravilha o poder da informação! No programa seguinte, o deputado explicou que o mundo era como um organismo vivo, uma rede, em que cada um influencia o bem-estar dos outros. Mas a conexão só se completa com perfeição se todos estiverem em sintonia interna. O que não acontecia com os viciados em trabalho, que, muito ligados às tarefas externas, deixavam de ouvir seu ritmo natural e desequilibravam a cadeia.

Viu só? Exatamente como a guru do site de sonhos disse, não estou suportando a carga de tarefas que me estão sendo impostas. Preciso me reequilibrar! Sônia foi dormir entusiasmada com a idéia de dar um novo rumo a sua vida. Sonhou, e se viu em uma festa. Estavam lá todas as pessoas que conhecia. De repente, Sônia sentiu-se mal e vomitou em si mesma. Estava empapada, dos pés à cabeça. O estranho é que não havia fedor. Procurava um banheiro para se limpar, mas o único na casa estava ocupado e as pessoas lá dentro se recusavam a sair. Sônia começou a gritar desesperadamente. Acordou sentindo nojo de si mesma.

De qualquer forma, precisaria deixar o nojo de lado e anotar o sonho. Olhou para seu criado mudo e estavam todos lá: o lápis, o bloquinho, o abajur. Também estava o relógio, que marcava 88:88... O quê??? Só podia ser um sinal, e muito assustador! Sentia muito medo quando pegou, tremendo, o relógio em suas mãos. Mas, depois de poucos minutos, chegou à conclusão de que era a bateria que estava fraca mesmo...

Ai, ai, ai, já tinha perdido tempo demais com aquele episódio! Sem se permitir outras distrações, começou a redigir o sonho. Tomou o cuidado de destacar as palavras-chave e as situações mais relevantes, que lhe trouxeram sensações fortes durante o sonho, do jeitinho que ensinava o site. Essas preocupações ‘formais’ acabavam diminuindo a ânsia de vômito que ia e voltava enquanto redigia...

Pronto. E agora? Bom, acho que o primeiro passo é consultar o Dicionário dos Sonhos. “Vomitar, página 412: necessidade de expulsar sentimentos negativos que o acompanham. Quem vomita em sonhos precisa rever suas escolhas.” Isso! Está na hora de botar pra fora todo o estresse que carrego e começar uma vida nova!

A primeira coisa que faria era pedir férias no estágio. Já havia um ano e meio que trabalhava sem descanso. Trocaria também as aulas na academia por treinos de dança de salão, algo mais, digamos, cosmoenergizante. Já era um bom começo. Mas e os números que agora a assombravam? Um dia acorda de um sonho às 02:02, no outro avista um expressivo 88:88 no relógio. Claro, o site. Lá eles saberiam tudo!

“Caríssimos analistas. Os conselhos de vocês mudaram a minha vida. Agora estou em busca de mim mesma! Mas persistem algumas dúvidas. Tenho sido surpreendida com estranhas combinações numéricas em minha vida. 02:02, 88:88. O que isso quer dizer? Sônia”. A resposta: “Sonhar com números é sorte com dinheiro. Ou azar. Cuidado”. Só isso? E tão ambíguo? Bom, o jeito era continuar atenta às mensagens que o sono lhe trazia. O pior é que, com essa história de acordar à noite e perder horas de sono em anotações, Sônia andava sonolenta durante o dia.

Na segunda-feira, acabou sendo pega dormindo em sua mesa, no horário de trabalho. O que seus colegas consideraram alarmante foi que, quando cutucada por um deles, não aceitou parar de dormir, pois isso significaria interromper um sonho maluquíssimo, que, provavelmente, teria um significado excepcional! Só acordou quando viu que sua chefe estava para chegar ao recinto e percebeu o quão ruim seria caso esta a visse dormindo. Não via a hora de as férias que já havia solicitado chegarem. Assim teria mais tempo para sua busca por si mesma.

Sônia definitivamente não conseguia pensar em outra coisa, a não ser em sonhar e descobrir o significado de seus sonhos. Refletia sobre isso o tempo todo, em casa, na faculdade, no trabalho e, até, nos treinos de dança que iniciou. Passava o dia imaginando o que iria sonhar na próxima noite, que estava ainda tão longe. Até que concluiu que não precisava esperar tanto. Começou a dormir em qualquer lugar, a qualquer hora, e explicava aos amigos que essa seria a única forma de encontrar a chave para o seguimento de sua vida.

Essas atitudes de Sônia começaram a preocupar as pessoas à sua volta, principalmente Pedro, que passou a ouvir freqüentemente da namorada conversas atravessadas sobre a relação sexual dos dois. Sônia chegou ao cúmulo de dormir durante uma transa! Questionada pelo namorado, disse que ele devia era agradecer, porque aquela atitude poderia ser a salvação do relacionamento deles. “Salvação? E quem disse que este namoro precisa ser salvo?” – se irritou Pedro – “Tudo bem que o sexo nunca foi grande coisa, mas o amor pede paciência mesmo”. Sônia tomou um susto. Sexo ruim? Que história é essa? Logo ela, que sempre se gabou de seu apetite sexual...

A partir daquele dia, Sônia e Pedro decidiram se separar. Ela achou melhor. Descobriu que seu problema sexual, que agora percebia – os sonhos indicavam desde o começo! –, tinha nome: Pedro. Desta vez, sim, sua vida entraria nos eixos! Como estava de férias do estágio, decidiu também perder algumas aulas na faculdade. Agora mesmo, Sônia está dormindo. Disse aos pais que não poderia ser interrompida, estava entrando em uma definitiva incursão em busca de sua ‘verdade interior’. O engraçado é que ela deixou a televisão ligada. Precisava ir para dentro de si mesma, mas não podia correr o risco de voltar dali a dois dias, e não saber de mais nada à sua volta...

Todas as mãos

Devaneadores diante de um espaço aberto, para idéias partilhadas. Eis o que somos. Devaneando, escrevemos, em um exercício infindável com as palavras.

percurso, desastre, razão, letra, migrantes, ausências, segredo, chão, passeio, confusão, certezas, liberdade, muros, ilusão, restos, condução, reconstruir, viagem, círculo.

A palavra Devaneios é a chave deste blog. Foi escolhida primeiro pela sonoridade (e leveza) da palavra em si e depois pela amplitude de significados que carrega. Graças a isto, Devaneios combina com cada texto em particular.

parceria, discurso, sina, vontade, escrúpulos, descanso, perdição, navegar, janela, frágil, sobressalto, costura, disfarce, escapar, quiçá, corredor, sombra, sinestesia, luz.

Não buscamos um só sentido. O que desejamos mesmo é que sentidos sejam recosntruídos a cada novo olhar e apontem para diferentes direções.

respiro, soluços, horas, instinto, acaso, fatalidade, idéia, fluxo, legado, substância, sementes, perigo, análise, crença, precaução, passagem, silêncio, solidão, nuvens, soneto.

Nossa forma de escrever é um tanto peculiar. Optamos por um exercício de construção coletiva, a quatro mãos. Tomamos como inspiração a proposta de artistas plásticos que constroem um mesmo quadro a partir de contribuições diversas: um artista segue as 'pinceladas' deixadas pelo primeiro e deixa novas propostas a serem executadas.

deslizar, conversa, barco, deriva, cavaleiro, moinhos, vento, chapéu, cascata, céu, véu, interrogação, futuro, tempo, aliança, clarão, realidade, direção, labirinto, sopro.

Aceitamos o desafio de tentar algo parecido na escrita. Nossa equipe é dividida em duplas (que variam a cada nova rodada) em que cada devaneador tem suas contribuições intercaladas com as do colega. O primeiro a escrever tem um espaço de mil caracteres para desenvolver parte de um tema, e o outro acata a idéia lançada e desenvolve-a até um momento seguinte, e assim por diante.

sem, vida, sono, tudo, troca, destino, memória, devires, música, expresso, atos, orgânico, assistência, voltar, atenção, espuma, ritmo, gratidão, lado, parte, todo, fim, solavanco.

A partir desses critérios, teremos um novo texto a cada semana. Devaneie conosco!