quarta-feira, 12 de novembro de 2008

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Ela dormiu pensando em terminar

Ela dormiu pensando em terminar. Não que o sentimento tivesse acabado. Pelo contrário, botaria um ponto final porque era louca por aquele homem. E olha que ele nem era lá essas coisas. Baixinho, barrigudo, e ainda tinha as costas corcundas. O problema é que ele era inteligente demais. Comentários perspicazes, auto-confiança. E, assim, o que para ele era solução transformava-se no ponto onde começavam os problemas dela.

 

A questão é que estavam se vendo demais. Desde que ele teve a idéia de almoçar na casa dela – coisa que ela estimulou tanto quanto pôde – começou a sentir-se cansada. Não dele, mas do esforço que fazia ao seu lado, para parecer mais inteligente, menos apegada, mais magra, menos prolixa, mais sexy, menos romântica. Para falar a verdade, era também um desafio que ela se impunha.

 

Seria o primeiro relacionamento a ser rompido por iniciativa dela. Em todos os outros, embora percebesse muito antes de seu parceiro a decadência da relação, mantinha-se firme, num esforço absurdo por permanecer comprometida. Dizia ser generosidade e renúncia, desconfiava que fosse pânico de ficar sozinha. Na manhã seguinte, quando entrou no banheiro, um terrível clichê deixou-a ainda mais confusa: ele havia deixado as escovas de dente.

 

Sentiu um misto de euforia e melancolia. Desejava comemorar a vontade dele de estar próximo. Mas temia o risco de que aquela atitude não fosse mais que comodismo. Conhecia a preguiça dele. Embora morassem muito próximos um do outro, ele sempre arrumava um jeito de se esforçar cada vez menos para vê-la. O almoço diário era uma dessas estratégias. Aliás, para ela, toda essa rotina revelava um “quase casamento decadente”.

 

Não queria esquecer também os motivos que a levaram a dormir tão desacreditada de tudo. A displicência dele; as mentiras nas madrugadas de sábado, que eram facilmente flagradas, depois, em meio às conversas com os amigos em comum. O comportamento dele era muito instável. E talvez fosse esse o motivo mais convincente para se ver livre daquela relação. O próximo encontro seria dali a algumas horas. O cardápio daquele dia fora escolhido especialmente para marcar a conversa derradeira. Filet ao molho madeira.

 

Ele chegou na hora marcada, como sempre. Este, entretanto, foi o único ponto em comum com os outros dias. A começar pelas gentilezas: trouxe uma sobremesa, a preferida dela, torta de limão; elogiou o seu vestido; disse que parecia mais magra. Essa sensibilidade tirou-a completamente do prumo. O interessante é que, enquanto as palavras e gestos eram, assim, delicados, o semblante parecia endurecido e triste. Ações mecânicas, ela poderia dizer. Assustada e óbvia, não se conteve: “Você está diferente!” A resposta, tudo com o que ela não contava: “Desculpe querida, mas não podemos mais continuar juntos.”

 

Em frações de segundos, uma dezena de hipóteses passaram pela cabeça dela. Ele teria arranjado outra, teria desgostado, estaria cansado do ciúme doentio dela. Precisava encontrar uma justificativa para aquilo. E quanto mais pensava, mais angustiada e cheia de dúvidas ficava. Quando as lágrimas começaram a escorrer, prendeu a respiração e deixou que ele falasse: “Você merece um homem melhor que eu”.

 

A resposta dele era exatamente a mesma justificativa que ela se apresentava todos os dias para terminar o relacionamento. O fato é que contra esse argumento ela mesma já havia desenvolvido todos os outros. Ele era indiferente, frio. Mas compensava a ausência sentimental com uma presença física diária. Às vezes chato demais, outras tantas, um dissimulado. A parte boa é que com o fingimento ele a alegrava, enquanto fazia de conta adorar as piadas dela e se entreter com as histórias da família, pelas quais, invariavelmente, ele não tinha o menor interesse.

 

Refletiu por mais alguns instantes, respirou aliviada e deu por encerrado o conflito. A conversa seria mais fácil do que imaginava. “Amor, o filet ao molho madeira está delicioso. Vamos comer.” Muito constrangido, exatamente como ela previra segundos antes, ele silenciou e começou a servir.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Novo dicionário da Língua Portuguesa (parte I) 

Olhar de longe aquela garota é a melhor parte do dia. Seus cabelos negros e esvoaçantes, seus olhos grandes e risonhos, suas mãos incessantes e pálidas. Sua forma de gesticular e movimentar os lábios mostra o quanto é engajada. Certamente, tem personalidade forte. Posso sentir seu cheiro sem conhecê-lo, escutar sua voz sem jamais tê-la ouvido. Mergulho facilmente em seus pensamentos, inteligentes e sensatos, imagino eu. Sei dos seus gostos e desgostos e chego a acreditar mesmo nisso. Parece que a conheço há muito, só de observá-la diariamente.

Admirar, verbo transitivo direto

 

Ele jogou tudo fora. Anos de dedicação e força de vontade agora escorrem pelo ralo. Do banheiro, pois o que sobrou é mal-cheiroso, sujo, nojento. O que era pura felicidade foi-se embora, e tudo culpa dele próprio. Errou, errou muito, errou feio. Arrependeu-se tarde demais. Num efeito dominó, perdeu tudo o que mais importava, deixou escapar das mãos aos poucos e... Já era. Para onde foram os momentos de glória? Só Deus sabe.

Beleléu, substantivo masculino 

 

Não havia mais ondas. As oscilações do oceano variavam de um a dois milímetros, ao céu ou ao chão. Os movimentos mais bruscos daquela paisagem eram mergulhos de gaivotas em nuvens, tão brancas. O mar esconde o sol, tudo se tinge de lilás. A amplitude do som que ainda se pode ouvir é mínima, quase nula. Nada de inesperado acontece, nenhuma novidade nas águas ou no ar. Tudo é paz.

Calma, adjetivo 

 

Acordou atrasada justo no dia do vestibular. Botou o pé esquerdo no chão e as mãos na cabeça. Vestiu qualquer coisa e saiu voando. No ônibus, sentou no chicletes. Fora dele, enfrentou a chuva sem sombrinha. A pé, o fluxo de carros era maior quando pisava no asfalto, e minutos inteiros se passavam até que a faixa branca pudesse, enfim, receber pedestres. Ao atravessar, tropeçou, deixou cair algo e voltou para buscar. Quando chegou à universidade, descobriu que a prova havia sido no dia anterior.

Desgraceira, substantivo feminino 

 

Um minuto e quarenta e cinco segundos para o fim do jogo, empatado até agora. Disputa equilibrada, muitas chances de gol. O Fluminense vai caminhando para o ataque, Gilmar domina a bola, dribla Juninho, velocidade é o seu forte. Passa a bola para Nogueira, que mata no peito. Ameaça isolar, mas domina. Vai chegando o Fluminense, é a hora pra marcar. Vai se aproximando da área Nogueira, leva uma rasteira de Edson, é faltaaa! É falta pra cartão, Carlos? Jogada difícil de marcar, Nelson, vamos ver o que o juiz vai decidir... Levanta o cartão amarelo o juiz, a torcida reclama. Bernardinho prepara para cobrar, falta complicada para o Botafogo. Barreira posicionada. Chuta uma booomba Bernardinho, bola baaate na barreira. Luiz Gustavo pega a sobra, mira o gol, bola desviiia no Juninho e é gol! Goooooooool cooontra, a favor do Fluminense! Dez segundos para acabar o jogo, e a torcida tricolor comemora! Fim da partida no Maracanã, e o Fluminense coloca o Botafogo fora da disputa pelo título.

Eliminar, verbo transitivo direto

 

Pé ante pé, fez toda a poeira levantar em sua colérica marcha. Nunca desejou ser centro de nada e muito menos que lhe desafiassem com um pedaço de pano vermelho. Quem pensavam que era? Um idiota, disposto a aceitar galhofas de um quase palhaço em trajes reluzentes? Terminaria com tudo em uma carreira e mostraria ao respeitável público quem deveriam realmente aplaudir. Num golpe certeiro, enfiou-lhe o chifre e crucificou-o no meio da arena.

Fúria, substantivo masculino 

 

Pô, me amarrei naquela mina. Aê, tu viu? É irada, filé. O bonde vai atrás dela mermo, rapá. Nego sangue, péla-saco, pipoqueiro... Mas eu nem fico bolado, descobri que ela é pingo, e dessa aí eu tô fora, tá ligado? Que nada, mano, a mina é gente fina. Os brother dela que são malaco. Ih, se mexe com chegado meu eu quebro é na porrada, num dô mole nem fudeno. Ow, deu minha hora. Tô ino nessa, fi. Num vai nem enrolar um fino antes? Nem rola, fi, mais pra frente a gente tromba aê. Valeu.

Gíria, substantivo feminino

 

O barulho do relógio a lembrava de que poderia ter sido diferente, não fosse tudo o que realmente foi. Sofria por pensar que simplesmente só lhe resta o que será. A máquina do tempo não tem botão de volta. Elaborava então estratégias conjugadas no futuro. Apenas em mente sorrirá, amará, viverá. Acabou desfalecida, por impotência completa. Esqueceu-se, afinal, de que o passado é lembrança e o futuro não existe. A vida é agora.

Hoje, advérbio de tempo

 

Olha, gente, isso dá pra fazer!

Iludir, verbo transitivo direto

 

Entrou no avião sabendo que não voltaria à casa ou à vida. Como ele, havia muitos outros, centenas. Corajosos? Inconseqüentes? Malucos? Talvez para alguns ocidentais. Para os próprios, não eram mais que meros súditos – de um Deus, quem sabe –, dispostos a realizarem aquela missão, que só estaria completa se não deixasse sobreviventes. Navios inimigos à mira, velocidade máxima. Em busca da colisão perfeita.

Kamikaze, substantivo masculino

 

Não têm rugas, não têm histórias para contar ou lembrar. Quando se põem a falar, parecem matracas. Não sabem do que tratam, são superficiais. Nunca aprendi nada com eles. Alguns ao menos gostam de escutar meus conselhos, vividos e maduros. Outros, impacientes, maltratam, abusam e fazem descaso. Muitos deles pensam que a gente queria voltar no tempo e ser de novo como eles. Eu não. O que já fui ficou para trás.

Jovem, adjetivo

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Hoje coroaram-me com um cone

O dia de hoje começou estranhamente alegre. Apesar da forte tempestade na noite de ontem – que parecia querer me carregar, tão fortes eram os ventos que a acompanhavam –, a manhã trouxe um céu descoberto e ensolarado. Crianças divertiam-se na Praça dos Imperadores. Vez ou outra corriam em minha direção, atrás da bola emborrachada que acabava de deitar ao pé de minha base. Incomum seria se desviassem o olhar para o alto. Quase sempre passo despercebido.

Agora, como antigamente, deparo-me, não raras vezes, com casais que, no banquinho da praça, mãos entrelaçadas e olhares perdidos, trocam versos que já eternizam um amor recém-nascido. Alguns deles datam vinte e poucos anos, outros já carregam peles enrugadas e cabelos grisalhos. Parece-me que todos possuem a alma cândida, assim é com os enamorados, ao menos nesse momento de tamanha cumplicidade.

Também eu experimentei tal gozo, de amar e ser correspondido. Surpreendeste-te? Considero natural o possível sobressalto de meu excelentíssimo interlocutor, ao escutar essas palavras doces vindas da figura que te fala. Quando ouço proferir meu nome, também eu estremeço, tão forte e temeroso me soa. A sensibilidade veio-me mais tarde, com o passar dos séculos, mesmo que, agora sim, seja, literalmente, um monarca em pedra. O pouco que trago comigo daqueles tempos é minha inseparável úlcera duodenal, que ainda me causa insuportáveis dores de estômago.

"O pouco que trago comigo...". Está aí uma boa questão. Dessas 'cabeludas', que nos fazem pensar sobre os mistérios do tempo, a imprevisibilidade das coisas, a vida, a morte... Quem diria que da grandeza das conquistas restaria o mito da minha altura, que da glória do meu trono mais fama se daria ao meu cavalo branco, que de 'imperador da Europa' ficasse eu intitulado o patrono dos loucos. Aliás, piada a qual não entendo, aguardando ainda explicações, quanto mais pela numerosa lista de melhores candidatos ao cargo, haja vista... bem, esses mesmos que tu, amigo, acabas de te lembrares. E mais, aguardo o dia em que, assim como da carne passei à pedra, o mesmo se dê ao contrário, de modo que, tendo retornado à vida e ao poder de outrora, possa mandar cortar a cabeça dos engraçadinhos que menos respeito que à autoridade demonstram em relação à própria vida.

Ah, soubesse eu das injustiças do poder! Conquista-se o mundo num momento (para, no outro, perdê-lo... Essa parte do jogo eu já conhecia), luta-se com primor, morre-se com dignidade, com a confiança sincera e tranqüila de que é possível ter um descanso honrado e solene, quando então te fazem de palhaço de feira, de praça, de colégio, do que for, reproduzindo tua imagem em matéria inerte, vulnerável às atrocidades dos inimigos mais desprezíveis, até às lesmas! Aliás, animais estes com quem tive o desprazer de conviver, tanto em vida, quanto por baixo desta terra úmida que me comeu e por dentro deste bronze rígido que me sustenta.

Se na época que corre sou apenas mais um personagem histórico sobre um cavalo – este sim, numa pose de absoluta coragem –, lembro-me de meus triunfos com memória precisa e fiel. Foram tantas as glórias em batalhas, mortes justas em territórios diversos, conquistas que ninguém além de um exímio comandante e estrategista poderia alcançar. Certo estou de que não revelo aqui novidades, bem sabes tu que vitorioso fui, ao menos em vida. Vide as deslumbrantes representações que futuras gerações têm o privilégio de cultuar nos museus – estes sim, dignos de uma figura de tão alto escalão –, graças a meus grandes artistas oficiais.

Todavia, essas recordações, de um tempo quando tudo eram flores, escoaram aos mais profundos baús, no momento da maior – sem dúvida, a maior – humilhação de todas as eras. Talvez mais grave que a infelizmente memorável derrota em Waterloo, hoje coroaram-me com um cone. Faltam-me palavras suficientemente plausíveis para descrever essa cena inimaginável.

Após meus depoimentos anteriores, nos quais até de amor falei, percebeste, certamente, que não sou o que muitos pensam da minha pessoa. Concordar-te-ás com este pobre injustiçado, querido interlocutor, que tal ousadia é enormemente humilhante quando se trata de alguém uma vez auto-coroado com ornato áureo, como é, claro está, o meu caso.

Um cone de via comum... Ora, qual de teus tataravós ousaria tentar tamanha picardia para cima de ‘moi’? Certo, pois, melhor que um chifre, mas muito mais gravemente emblemático que tal lúbrico pormenor. Um cone de via: lembrança de que o trânsito é a lei de tudo. Que a História é a própria estrada a rodar, e, de tal modo, muda-se a paisagem pela luz que varia e com a inclinação do olhar. Ainda assim, ‘monumentos’ como eu provavelmente sempre estarão no caminho – e tu, mero risonho leitor, destinado ao pó que já não és? Touché!

Um cone de via comum. Só espero que, assim, não venhas aqui ‘amarrar a tua égua’.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Realidade

Monstros têm vida. Bastava um transtorno qualquer, um tropeço, um não, uma desavença, um erro, um imprevisto. Transformava-se nesses dragões que guardam toda a fúria e mais um pouco dela.

As unhas infindáveis começavam a brotar e crescer em direção ao meu pescoço, os olhos eram pintados do mais rubro vermelho, a pele secava até ser escama, dentes mal cabiam na boca, aquela baba amarelada pingava sobre a minha testa, o rabo realizava movimentos cortantes contínuos como se fosse possível esmiuçar o ar em quebra-cabeça, as baforadas faziam tudo ser inferno, o mais ardente, e que mesmo assim arrepia. Diante dele, dragão, em mim só cabia medo.

Uma vez reuni num sopro toda a paz e mais um pouco dela, na vontade de congelar perversidades, paralisar crueldades e fazer com que ele deixasse de ser monstro e voltasse a ser gente, simples. Deu certo. Mas teve um dia, ainda criança, que meu sopro falhou.
Mais cedo ou mais tarde isso aconteceria. Já se sabia... Como? “A mesma mão que afaga é aquela que apedreja." E eu tão jovem... Acho que qualquer idade seria jovem demais para aprender de tal forma o real significado da maldade.

“O verdadeiro mal é sem idade, é sem tempo ou espaço. O verdadeiro mal acontece como que num universo paralelo, invisível enquanto é. Talvez, por isso, ninguém tenha visto quando seu corpo violado foi carregado escada acima. Ninguém viu porque o mal não tem futuro; ninguém quer admiti-lo, por isso é imprevisível. Pelo mesmo motivo é sem presente. O verdadeiro mal só tem passado. Suas formas estão no pesadelo e no horror das lembranças do acontecido que não podia ser.”

Com essas palavras confusas, o anjo triste tentava embriagar os meus sentidos e me fazer esquecer da dor, do ódio e, talvez, do medo. Mas era difícil escutar o acalento, que se apagava diante do choro das outras crianças e dos gritos de horror que invadiam a casa. Em pouco tempo, meu sangue – o mesmo que há pouco, num encontro inesperado com um vaga-lume, havia feito o coração pulsar de alegria – tingiu tudo de vermelho. Foi quando descobri que marcas de sangue não se apagam, elas cicatrizam.

“A cicatriz é a deformidade de nós mesmos. É algo que foge do curso e que, por isso mesmo, é diferente. São linhas, perfurações, rasgos que se preenchem de um passado doloroso, de lembranças. O detalhe é que a cicatriz não é uma só. Pode ser impressa na pele, mas também apenas na alma. A pior sentença de um homem é ter de conviver com a cicatriz de um erro. Marcas de sangue não se apagam.”

Conseguia agora ouvir melhor as palavras do anjo, ele estava cada vez mais próximo e narrava em palavras doces a minha história. História tantas vezes contada depois pelas ruas, nas bancas de revista, na televisão em horário nobre, tal qual novela. Todo dia um detalhe novo para a mesma pergunta.

Confesso que fechei os olhos para não ver a cara do assassino, ou então simplesmente apaguei da memória a face daquele crime. Diante do abandono do corpo no ar, jogado de encontro à terra, ainda vivo, será que fundamentalmente importa mesmo é o pai, e não o humano? O rosto e não a mão? A razão e não o sentimento?

Na queda aprendi tanto sobre a imobilidade, no ar aprendi tanto sobre a terra, o chão firme. "Na dor tanto sobre a miséria, e nela talvez um pouco sobre a luz", me diz ele, que acarinha os meus cabelos e tenta fazer com que a vertigem passe e eu me encontre de novo em mim.
É o anjo também quem me ensina que toda história é feita de versões: a dos outros, a deles, a minha. E quero que a minha versão seja construída de perdão e de agradecimento. Perdôo por razões simples. A raiva me faz mal e o perdão me faz bem. Agradeço por várias razões.
Obrigada por ter feito com que eu me livrasse de você e de mais momentos de terror. Obrigada por ter me apresentado à liberdade, naquela mesma hora em que soltou minhas mãos. No meu vôo em direção a esse outro plano, conheci o sentido real da liberdade. Ela é fluida, tem o peso da queda livre e faz com que um corpo seja apenas um corpo. A vida vai além. Transpõe ossos, órgãos, tecidos, asfalto, nuvens, galáxias e chega até aqui.

“A liberdade é feita de asas. Poucos são os que conseguem vesti-las. Há de se ter um bom coração." Assim, o anjo explica a novidade em minhas costas.

Ele então pega a minha mão e me guia por um caminho que me leva para longe da dor. Mas, basta que eu feche os olhos e revejo tudo com as impressões mais intensas, como se vivesse cada momento de novo, mas sempre diferente. Entre as imagens, vejo a figura daquela mulher que, sob os olhos de todos, representa hoje o retrato da agonia. Me tranqüiliza saber que ela também, com o tempo, vai descobrir o poder de vencer as distâncias e, com um fechar de olhos, me buscar nos sonhos.

Uma tristeza, porém, vem de repente e me interrompe o avanço. Lembro que sou também um terrível fantasma. Olho para trás e vejo ele que me olha aterrorizado e desesperadamente se disfarça, procurando rechaçar a condenação dos outros olhares e os olhos da própria justiça. Olho-o e me pergunto quando.

“A esperança é uma eterna possibilidade."

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Caminho de casa

Olha lá, a Dona Angélica chegou. Achei que hoje ela não entraria neste ponto, afinal é quinta-feira, quando ela costuma sair mais cedo do trabalho. É o dia de fazer as unhas, dois quarteirões acima da biblioteca, onde então toma o ônibus. Pela sua cara, teve que fazer algum trabalho urgente para o chefe e não pôde cumprir sua rotina. Vai se sentar ao lado do Pedro, que também não está com cara de muitos amigos. Acho que está quase desistindo da faculdade, quer mesmo é trabalhar com um táxi. Olha só como ele observa a fila de motoristas parada ali na esquina!

Até agora ninguém se sentou comigo... Já vi tudo. Vou ter que agüentar o Marquinho, aquele mauricinho que volta pra casa, depois do cursinho de inglês, ouvindo músicas no maior volume. Não disse, lá vem ele... Mas que estranho, ele está sem os fones de ouvido e parece tão triste... E olha lá, se sentou com a Clara, que, tenho certeza, não viveu nada de extraordinário hoje. A vida da Clara é como o nome, pálida.

Todos os dias, sei que vou encontrá-la neste mesmo horário, pouco antes de o ônibus passar. É ela sempre a última a se levantar do banco da rua, enquanto todos os passageiros se digladiam para entrar no veículo. Ela não, parece não ter pressa. Entra e senta calmamente, e fica a viagem toda olhando para a janela, sem conversar com ninguém. A monotonia é tanta, que nunca descobri em qual ponto ela desce! Até tento reparar nas suas ações (ou na ausência delas) e, sem querer, me distraio com outra coisa... E aí, meu bem, já é tarde, ela já foi embora para sua vidinha morna. Clara, sim, não há outro nome para ela.

Achei que eu fosse ficar sozinha, mas não, vou ter que aturar o Seu Bebeto, que acabou de passar a roleta. Esse aí eu conheço. Vive puxando assunto com quem quer que esteja ao lado, na frente, até com o trocador... Comigo, a conversa é a mesma: “Ouviste falar em veranico?” Não, na primeira vez, eu realmente não fazia idéia. Mas, na maioria das vezes, eu balanço a cabeça e abro um sorriso simpático, de quem está muito curiosa por saber sobre esse “fenômeno climático de estiagem, responsável por esse calor do cão!” “Calor-do-cão”, ele repete, antes mostrar os dentes amarelos com uma risada maliciosa, de quem tem muito a ensinar para moças jovens e inocentes, como eu.

Decidi que seria “Seu Bebeto” hoje. Antes eu o chamava de Seu Jorge, mas depois daquele cantor, fica difícil criar uma vida de velho galanteador de jovenzinhas. Bebeto não, Bebeto combina... Enquanto penso nisso e rio das minhas invenções, ele continua a reclamar da temperatura. Mas são só alguns minutos, logo ele se vira para outra pessoa. Seu Bebeto faz muita questão de novas amizades.

Na minha frente, senta um casal de namorados. Muito agarrados, eles falam baixinho e se beijam calorosamente — daqueles beijos bem estalados que me dão arrepios só de ouvir. Do reflexo da janela, posso ver o rosto deles, ela com a cabeça no ombro do rapaz, com um sorriso imenso e constante, como se nela não coubesse tanta felicidade. Isso transbordava em seu olhar, perdido em todos os lugares, sem alcançar nenhum. Deve ser namoro recente, quem sabe o primeiro amor...

Sim, era o primeiro amor. E Ana, como ela se chama, parece ser o tipo que acredita no príncipe encantado, no amor para toda a vida. Logo se vê, pelo cabelo comprido, partido ao meio, e o vestido florido, muito simples. É de uma simplicidade de moça do campo.

Poderia ser Ana, Maria, Márcia ou qualquer nome de gente comum. Mas ele, com certeza, era Cláudio... Um tipo que parece comum e inofensivo à primeira vista, mas no fundo, é prático, obstinado e tem lá suas ambições. Homem simples também, mas que — nem mesmo ele sabe — pode ser capaz das piores crueldades. Como quebrar o coração de uma Ana...

Talvez Marquinho esteja triste porque gosta de Ana e não suporta mais vê-la com Cláudio. Quem sabe uma verdadeira ciranda, em que Bernardo goste de Ana, que gosta de Cláudio, que se interessa por Clara... Mas não, terminaria cedo. Clara não se interessa por ninguém.

O engraçado é que, por mais que eu evite, esse meu quebra-cabeça sempre se volta para minha pálida e silenciosa colega de lotação. Ainda não tive ânimo de inventar sua história, mas ela aparece em todos os meus enredos. Talvez seja isso, o que eu não consigo enxergar, na figura mais difícil de caricaturar dentro deste ônibus. Se eu resolvesse apontar, poderia dar a minha versão para a vida de cada um dos que me acompanham nesta viagem. Mas Clara, não: é tão pálida quanto impenetrável.

Da janela, vejo os carros parados no trânsito pesado do fim de tarde. Algumas pessoas viajam sozinhas. Outras têm companhia e conversam para se distrair. Já outras permanecem inertes, mesmo com outras pessoas ao lado, tomadas pelo cansaço do dia. Ou pelo cansaço do outro, talvez. Meu maior desejo é poder ouvir o que se fala dentro dos carros. Não, não, essa minha mania já está indo longe demais. Só que, com um trânsito desses, sei posso ficar horas e horas inventando histórias com os personagens da vida.

Mas o que é aquilo? Marquinho diz algo e tão perto do ouvido de Clara que, tenho certeza, ela sentiu um arrepio na nuca. Eu senti. É a primeira vez que alguém fala com ela em todo esse tempo. É a primeira vez que Marquinho se dirige a alguém. Será que ela vai responder? O que será que ele disse? Se tivesse apenas perguntado as horas, não seria tão próximo. Se fosse alguma tentativa amorosa, ela reagiria. REAJA! Quando percebi, havia gritado. E todos no ônibus olhavam para mim. Menos ela. Ou não?

Ela vira o rosto para Marquinho, meio que sem entender o que ele conta, depois pára para pensar e... Olha para mim. Olha para mim? Meu Deus! Eu me perco tanto nessas observações de pessoas, que nem mais tenho o cuidado de disfarçar! Viro rapidamente para janela, para despistar... Não adianta. Ela já percebeu minha indiscrição.

De repente, Clara se despede de Marquinho, levanta e vem em minha direção... Vem tirar satisfações! Ai, tá vendo, é isso que dá ficar bisbilhotando a vida dos outros. Mas eu nem faço isso, eu invento histórias, o que é que tem isso? Já tentei ler livros ou ouvir músicas... Mas não dá, as pessoas sempre roubam minha atenção. Como explicar isso para ela agora?

Ela vem até mim, minha barriga gela. Antes que ela pergunte, é melhor falar logo: “Clara... digo, você, eu não sei o seu nome, mas tenho te observado, sei lá, sua vida é tão simples, tão vazia, sabe? Como a minha. É isso, como a minha vida...”

Calo-me angustiada quando vejo que todos me olham, alguns riem, outros sentem pena... Talvez me achem uma “Clara”. Ela, por sua vez, reage diferente: me olha assustada, como quem não entende nada, e sai correndo do ônibus, como... era o que ela queria fazer desde o início...

Depois dessa, melhor sentar e voltar para casa. Mas sem imaginação por hoje.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

(Re)encontro

Posso reconhecer sua risada alta e prolongada do início do corredor. Logo adiante, um feixe de luz denuncia que uma porta está semi-aberta. Outras vozes também parecem vir lá de dentro. Bom saber que você tem companhia e pensar que está feliz. Será que ainda mantém os cabelos longos? Ainda gosta de sorvete de chicletes depois do almoço? Canta Roberto Carlos debaixo do chuveiro? As mínimas coisas me fazem falta, suas piores características.

Às vezes tenho vontade de ver aquele filme com o Tom Cruise, que você me fez alugar tantas vezes, até não suportar mais. Estranho ter saudade dos seus abraços extremamente apertados, das suas conversas intermináveis e cansativas, da sua carência notadamente excessiva. Acho que hoje já não me zangaria se você começasse a contar aquela velha estória pela milésima vez. Talvez até achasse graça.

Ouvi dizer que você agora virou artista e anda fazendo coisas realmente bonitas. Achava mesmo que levava jeito pra arte. Sua forma de ver o mundo sempre foi bastante peculiar. Este quadro, será seu? Acho que não, você costumava preferir as cores mais quentes. "Cores de dias de sol, pra iluminar a vida da gente", dizia.

Me contaram também que anda fazendo do mundo poesia. Não duvido. A caneta sempre foi a extensão de seus dedos. Ao fim de sua clássica e freqüente catarse, já podia prever um papel rabiscado de sentimento e os olhos lacrimejados. E aí, lá vinha você, me puxando pelas mãos até a sala. Eu ficava no sofá, à meia luz, você ocupava todo o espaço, gesticulando desse seu jeito tão seu filosofias acerca da vida.

Eram palavras e questionamentos muito complexos, sempre intensos. Nunca entendi exatamente o que queria dizer. Mesmo assim, achava bonito e me sentia até instigada a mudar em mim algo que eu não sei bem o quê. Sinto saudades. Tanta que dá vontade de sentar neste sofá, que não é bem aquele, e torcer para que saia pelo corredor recitando verdades líricas à sua maneira. Mas, por favor, cuidado com as paredes, aqui elas são tão brancas...

Não deve ser fácil tornar compatíveis o branco e você. A tranqüilidade que a cor traz costuma passar longe do furacão de sentimentos que você é. Talvez aí dentro desse quarto seja diferente, até mais agradável. É certo que há mais cores, só pelo fato de haver gente. Gente como você.

Quanto mais me aproximo da porta, mais as vozes se tornam música, e já posso ouvir toda uma ópera, da qual é protagonista. Te imagino vestida com um tecido longo e solto, bem vermelho. É como acredito que esteja agora. Engraçado. Não consigo te enxergar oito anos mais velha. É como se esperasse encontrar aquela mesma imagem que tenho gravada em minha memória.

Este cheiro... Não me é estranho. Dificilmente conseguiria me lembrar de sua origem exata, mas as sensações que o olfato nos permite reviver são sempre fortes. A impressão é que mistura fragrâncias de vários momentos da gente. Ai, quero encher o peito disso e não deixar escapar nada, só pra ficar assim, sufocada de lembranças boas. Cheiro de mato lá da fazenda, cheiro de baunilha do bolo da Maria, cheiro de madeira daquele baú, cheiro doce de você. Será que ainda é doce?

Só espero que não fique amarga comigo. Naquele dia, sentada dentro do carro, esperei a eternidade para ter coragem de te deixar aqui. Foi preciso que o guarda dissesse que o horário já não permitia mais visitantes. Oito anos desde então. E, se olharmos bem, oito é o infinito de pé. Tempo que levei para apaziguar os meus eus. Queria ter também a capacidade de inventar realidades. Às vezes, é duro estar no mundo.

Olhos fechados, boca calada, ouvidos tampados. Acho que a omissão me ajudou a entender tudo o que aconteceu com você, com a gente. Daqui já te ouço. Não vejo a hora de alcançar a porta pra poder te ver e te falar. É tanta coisa... Difícil me aproximar desse momento pelo qual tanto espero e que, ao mesmo tempo, tanto temo.

Cada passo requer uma coragem que não sei ao certo de onde vem. Também não posso calcular até quando ela virá. Confesso que, em meu caminho até aqui, não foram poucas as vezes em que quis dar meia-volta e fugir desse reencontro – ou melhor, encontro, uma vez que hoje ambas somos necessariamente outras. No entanto, minha consciência e meu coração me levaram a seguir adiante.

Percebo agora um movimento de porta, uma sombra no chão. Hesito e já não consigo identificar minha própria vontade. Quero e não quero que seja você ali. Sinto um frio esquisito, que sobe pelas minhas vértebras e me faz encolher os ombros. Tento aquecer minhas mãos geladas, porque não quero que estejam assim ao encontrar as suas.

Ao erguer a cabeça, me dou conta que já estou no meio do quarto. Giro à sua procura. São muitas cores e sons, quanta gente. Parece que já me conhecem há anos. Mas, que cor é você? Não seria capaz de reconhecê-la? De vestido branco, meu Deus! Você! Como poderia imaginar? Linda! Da varanda do quarto, recitando poesias aos amigos no jardim. Acho que nem imagina que estou bem aqui atrás. Os cabelos continuam compridos, mas tenho certeza que você mudou. Pela voz. Não era tão pacífica.

Você se abaixa em agradecimento ao público, exatamente como fazia após as declamações filosóficas na sala lá de casa. Mas sei que está diferente. As mãos, visivelmente macias, agora carregam rugas. Acompanho cada movimento seu. Está leve. Ao se virar, imediatamente seu olhar se fixou no meu, como se já soubesse que estou aqui. Minhas pernas não respondem, é preciso que você se dirija a mim.

Que abraço bom... Daqueles que chegam a apertar a alma, que não deixam caber ressentimentos, explicações, mágoas. Queria um desse há tempos... Um beijo em cada bochecha. Delícia! Deve ter aprendido isso aqui, né? Está ainda mais doce. Impressionante como sua gargalhada continua a mesma, é excesso que preenche de coisa boa. "Fátima, que alegria te ver!", você diz, terna, exalando vida.
A alegria está em mim. Não sabe como é bom te ver assim, tão feliz, embora eu não me chame Fátima.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Ele podia tudo

...se você deixar o coração bater sem medo.. se você deixar o coração bater sem medo... Claro como nunca foram lidos todos os sinais do instante e no frenesi do tempo que pára sua agitação, levantou o pó da estrada: nuvem cigana. Daria a volta ao mundo, parando em cada esquina, adentrando cada beco, rua, ruela. Queria cobrir a Terra com a poesia de seus pés inquietos. Queria saber era de portas se abrindo, sentir o aroma fresco da gargalhada de todas as crianças, contar os calos nas mãos de cada velho, cada senhora. Delas, de cada moça, menina, mulher, queria o estoque infinito do prazer mais doído. Ver tanto até gastar os olhos, pecar tanto até consumir toda maldade, restando no fim a barba branca, emaranhada de sutilezas. Cantarolar saudações e despedidas, acumulando uma dose tão fatal de saudade, que seu coração um dia simplesmente pararia de bater, distraído com o selo de uma carta antiga. Queria dar a volta ao mundo e voltar pra casa pra colocar a mãe no colo, também o pai, quem quisesse, a família inteira, pra que reconhecessem nele o avô perdido, o bebê a caminho.

Não sabia ao certo a que lugar pertencia, queria restar sempre na lembrança de onde quer que fosse, de quem quer que o visse. Assim também desejava deixar em si a alma dos instantes vividos, numa sofreguidão de quem acreditava ser cada um o melhor momento. Não negava o passado e os desencontros, a infância e as descobertas, as antigas horas e os ensinamentos de cada passo. Mas não podia concentrar-se no que não fosse o presente, o não saber, o ser levado. O resto, que a pele cuidasse de gravar, como fez até agora. Estava decidido, partiria. E para não fazer daquele o momento final, mas apenas um começo bom, não deixaria avisos. Fecharia as janelas da casa imaginando beijos nos rostos queridos, saudando as horas abandonadas das alegrias que ali o trouxeram. Olhando longe, saiu.

Bateu a porta, o pé no chão, e olhou pro lado pra ver o sol que caia atrás das montanhas. No céu, o traçado de algumas estrelas desenhava um mapa de sombras e luzes dançantes. O vento frio anunciava o silvo distante das cidades do litoral. De lá para ‘outro lado’ era um passo. Era sempre um passo. Assim, seria sempre o seu caminho. Pé ante pé, infatigáveis passos maiores do que a perna. Mas, havia ela. Ele sabia que não importasse o tanto de coisas que ele metesse no buraco da sua curiosidade infantil, ele não deixaria nunca de ser sem fim, sobretudo por causa dela. Não importava. Quantas coisas deixaria de contar por causa dela? Era a pergunta que a garota lhe fazia, do outro lado da rua. O som dos carros ruminava uma falta de sentido que se completava no vacilo de sua boca. Mas, e aquela boca?

Estranho como bastava um pedaço de corpo e toda essa distância transformava-se. Se permitisse a recordação da pele fina e rosada daquele sorriso, seu afã de estar longe se esvaía na mesquinhez da necessidade e do apego. Mas era o sorriso mais triste e sublime, a boca mais amarga e amorosa. Era a sua, ainda que não tocada. Era a dona, sempre e mais ausente. Quase conseguia ouvir a música dos passos diminuindo enquanto a apatia do querer crescia, insuportavelmente. Talvez a escolha em sair significasse fuga, talvez a liberdade física fosse desculpa para livrar-se da dependência estúpida, de um amor burguês demais para a sua fé clube da esquina. Pensando assim, parecia ser a escolha final. E num novo relâmpago, tal qual aquele que o tirara de casa, esquecia-se do que o motivara. Só se deu conta disso quando já se encontrava sentado ao meio fio.

‘A gente nunca foge da gente. A gente nunca foge de certas pessoas...’. E ao sorriso que a garota do outro lado da rua agora ostentava, ele respondia com um tapa que, estalando forte na cara ‘da pele fina e rosada’, prometia novos tons de vermelho, um branco de dentes estilhaçados.. a aparência febril de um sorriso amarelo. Bem que poderia ser. A gente pode nunca fugir, mas sempre podemos ir ao encontro do novo. A cada dia o mundo nascia de novo; cada pessoa um novo filme, um novo livro; a cada minuto ele ia ficando mais velho e as lembranças graves mais um minuto presentes em sua vida.. cada vez mais pesadas e ele mal já conseguia movimentar as pernas.. mas era preciso justamente correr, como sempre vira naquelas matérias babacas de jornal da tarde, era preciso correr, perder peso, ficar em forma, elevar o espírito, buscar a felicidade que reside sempre incólume no fundo esperançoso de cada um, o que de tão óbvio até uma criancinha sabe, só não sabe ninguém a qual profundidade exatamente a gente se salva. Não adianta ficar parado, correr, corramos todo, corra o mundo, em forma esse é o novo mandamento das lembranças graves, a cada segundo, bastava mexer alguns músculos na cara e um sorriso estava pronto.. ‘Paciência, meu filho, paciência’, parecia dizer o velho que atravessava a rua e bem que poderia ser ele.

Se você deixar o coração bater, lidos todos os sinais do instante, o pó da estrada: nuvem cigana. Sentir o aroma fresco de cada moça, cantarolar uma dose tão fatal, distraído com o selo de uma carta antiga. Dar a volta ao mundo, voltar pra casa. Deixar em si a alma, do passado e das descobertas. Ser levado, para não fazer daquele o momento final. Saudar as alegrias abandonadas. O traçado do vento frio era sempre um passo. Pé infantil, não deixava nunca de ser sem fim. Do outro lado da rua, aquela boca, necessária e dona. Insuportavelmente, um amor clube da esquina. Sentado ao meio fio, nunca foge de certas pessoas. A pele fina e febril nascia de novo. A gente não se salva, grave a cada segundo.

Abriu de volta as janelas, mas deixou-se ficar na calçada.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Mergulho

E, de repente, todos os sons parecem cessar. Um silêncio tranqüilo e aliviante toma conta da minha mente. O corpo gela, mas pouco a pouco sou acolhida pela imensidão e nela fico – ou sou deixada –, até alcançar o equilíbrio, recuperar a consciência e me largar, rumo a qualquer destino ou direção.

Posso ouvir o movimento da água, que varia de acordo com o meu próprio. Meus olhos estão fechados, mas já consigo ver o azul e as pequenas e numerosas bolhas de ar que buscam velozmente a superfície.

Ouço atentamente o ruído da minha expiração. Tento fazer com que seja mínimo e espaçado. A velocidade das batidas do meu coração acelera quando por baixo dos meus pés não sinto o fim. Deve ser parecida a sensação de voar.

Ganho coragem, abro os olhos. Sinto um ardor progressivo que acaba por fazer encontrarem, em um impulso, as pálpebras superiores e inferiores. Com os músculos do rosto ainda contraídos, vou me acostumando aos poucos com um contato mais demorado entre minha córnea e a água.

Só então reparo à minha volta. A imensidão azul estava mesmo lá, como eu previa. Azul, "a cor do céu sem nuvens" – foi o que eu ouvi uma vez, num desses momentos tão banais em que você joga conversa fora e começa a filosofar sobre o sentido da vida e das coisas. Acho graça.

Enxergo, lá embaixo, vários pontos coloridos, que se movem rapidamente. Nadam unidos, seguindo um caminho não muito regular. Penso em me aproximar, testar a reação deles. Mas, antes de ensaiar qualquer deslocamento, vejo, bem perto, um pequeno peixe azul e reluzente. Sozinho, vem em minha direção.

A princípio, não consigo definir sua forma exata. É como experimentar um problema de visão que nunca tive. Será que os míopes enxergam assim? O peixinho se aproxima e, cada vez mais, consigo perceber os detalhes de suas cores e texturas. Penso na função de cada escama e barbatana, em como seria se eu tivesse nascido peixe. Deve ser incômodo dormir de olhos abertos.

Desvio o olhar, com os pés fincados na areia e a cabeça perdida no infinito daquele azul, tão claro, tão completo, que jamais poderia deixar alcançar a totalidade de suas nuances. Cair no mar é como mergulhar no céu. O seu inverso semelhante.

Vejo a corrente azul se afastar. Percebo o perigo de me perder em pensamentos em meio a um ambiente tão estranho e misterioso. A expiração cada vez mais recorrente me lembra que meu tempo aqui é curto, cada segundo me aproxima do limite. Do meu limite. Recupero a concentração.

Sigo em direção a um coral cor-de-fogo, sei que há ali muitos segredos para se desvendar. Imagino o grande número de vidas que abriga, seres que não conhecem o mundo lá fora, o meu habitat. O oceano é mesmo um universo paralelo, que posso visitar, mas nunca fazer parte dele.

Uma corrente fria passa por mim, à altura dos meus joelhos. Como reflexo, tiro os pés do chão e me encolho, trazendo as pernas dobradas junto ao tronco e abraçando-as. Fecho os olhos e deixo que meu corpo flutue e minhas costas encontrem a superfície.

Deixo-me levar pelo movimento da água, flutuando, e assim fico por alguns instantes, que parecem durar horas. Meu pensamento divaga e eu me sinto tão leve, que posso ir a qualquer lugar que queira em um momento, e, no próximo, estar em outro, por mais distante que seja.

Escuto algo. Um som abafado, vindo de não muito longe. Isso faz com que minha mente volte ao corpo e, aos poucos, tome conhecimento de cada parte dele. Começo a agitar os braços e as pernas. Presto atenção em cada movimento, cada dobra, cada estiramento. É como se, pela primeira vez, eu tivesse seu controle pleno e com ele pudesse fazer o que quisesse.

O barulho torna-se cada vez mais nítido. É provável que seja uma embarcação que se aproxima. Se ela for grande... Uma enorme tensão toma conta de mim. Abro os olhos, mas não posso ver mais de dois metros à frente. É cada vez mais difícil controlar a respiração, que parece implorar por oxigênio.

Lembro-me da primeira vez que entrei no mar. Nunca me arriscava a ir mais longe, tampouco a fazer movimentos bruscos. Achava que o mar era violento. Minha postura era quase sempre estática, a cabeça voltada para a praia, para as outras pessoas. Sentia-me sem proteção. Algo parecido me acontece agora.

Faço de minhas mãos e pés remos e, em movimentos rápidos, empurro a água para trás, com o objetivo de ir adiante. Vejo um vulto escuro e irregular, que reconheço à medida que vou me aproximando. É a mesma rocha de que saltei há pouco.

De repente, quase que involuntariamente, lanço minha cabeça para fora d'água. A luz do sol ofusca a minha vista, que aos poucos se torna nítida. Não há ninguém por perto, só um pequeno pesqueiro que se afasta da praia. Respiro, finalmente, aliviada.

Volto todo o meu corpo para a água. Aliviada? Já não tenho tanta certeza, quando entro novamente naquela imensidão. Mas, às vezes, acho que gosto dessas situações divisoras. O perigo e o medo nos despertam e nos fazem seguir adiante.

Ultrapassando fronteiras - é assim que me sinto agora, a cada passo pensado, cada movimento sentido. Logo a tensão diminui e consigo recuperar a agilidade. Percebo que não há nada a temer.

Penso na vida lá fora. Será a mesma quando eu sair daqui? A cobrança no trabalho, a competição na faculdade, a busca por certezas, respostas e sucesso a qualquer custo. Aqui, não. Poderia ficar no mar para sempre, nunca ficaria entediada.

Liberdade. Acho que é isso que o mar me traz. Mas não seria uma ilusão? Os objetos desfocados, a lentidão dos movimentos, a ausência de som. Não consigo acreditar nas coisas que passam por mim, no que vejo, no que toco. É como se eu estivesse sonhando. Muito fácil me perder nessa ausência de realidade.

Meus movimentos ganham força e tenho vontade de ir cada vez mais longe. Vou me afastando da costa. Meus pés já não podem alcançar o chão.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Hipnose

Luiz Cláudio acordava todos os dias, religiosamente, às 06h35 da manhã. Levava seis minutos entre se levantar, escovar os dentes e entrar para o banho, em que sempre gastava exatos oito minutos. Depois de vestir seu uniforme e sapatos em quatro minutos e meio, sentava-se à mesa do café, onde sempre havia bolachas, leite, chá e uma maçã. Claro, com prazo para se alimentar: dez minutos.

Tudo cronometrado, às sete horas, três minutos e meio, saía de casa a caminho do mesmo ponto de ônibus, onde estavam as mesmas pessoas, para tomar a mesma condução. Para ele era um prazer e um conforto avistar os conhecidos rostos, ter certeza de que tudo corria igual. Não que Luiz Cláudio conversasse com alguém ali, mas era bom sabê-lo. Ele então se sentou, no lugar costumeiro. Em 75 segundos o ônibus passaria. Mas não passou.

Luiz olhou para os lados e reparou na expressão tensa das pessoas. Elas pareciam perceber, assim como ele, a crise que se anunciava. Voltou o olhar novamente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros giravam em uma velocidade exorbitante e terminaram por deixá-lo completamente tonto. Fechou os olhos por um momento a fim de se recuperar e piscou várias vezes antes de abri-los de novo.

Quando se sentiu finalmente desperto, tentou ocupar sua visão com alguma paisagem estável e distante. Aproveitou para focalizar o final da rua de onde deveria chegar o veículo esperado. Afinal, se o tempo realmente estivesse passando mais depressa do que de costume – como denunciavam os ponteiros de seu relógio – mais chances existiam de o ônibus estar próximo dali.

Foi nesse contexto que o rapaz avistou uma grande e escura ave que rodeava um dos bueiros daquela rua. Luiz Cláudio nunca tinha visto nada semelhante dentro da cidade. O bípede de cauda longa e arredondada despertou seu interesse de tal forma, que Luiz pôs-se a caminhar em sua direção, aproximou-se e passou alguns minutos imóvel diante da ave, tentando imaginar o que ela procurava lá dentro.

Talvez um pouco fora de si, o rapaz abriu a tampa do bueiro e, sem nenhuma explicação evidente, lá entrou, acompanhando o animal. Entretido com aquela descoberta, Luiz Cláudio nem mais se preocupava com horários. Além disso, temia que acontecesse algo semelhante, ou até pior, à última vez em que consultou as horas. Era tamanho o seu envolvimento, que também nem se importava com o cheiro ruim e a relativa escuridão do lugar. Simplesmente seguia a ave.

E Luiz observava tudo. Estava tomado por uma curiosidade incomum, principalmente para alguém que nunca foi de observar nada além dos ponteiros dos muitos relógios que tinha. Chamava a sua atenção cada entulho deixado no bueiro, a maneira como a água escura corria... Às vezes tinha vontade de tocá-la. Passaram-se horas e Luiz Cláudio continuava caminhando junto ao estranho animal.

Passou por um grande bueiro de onde pôde ver que já estava começando a escurecer lá fora. Foi quando, pela primeira vez, pensou em voltar para casa. Levaria seu relógio de pulso ao conserto e voltaria à sua rotina habitual. Porém, como se percebesse as intenções do rapaz, a ave começou a fazer um barulho estranho e a se mexer de maneira desordenada. Rodopiava tanto, que começou a jogar água em Luiz. Ele se sentiu enojado e ao mesmo tempo encantado, porque teve finalmente oportunidade de sentir a água, sua temperatura e odor. Olhou em volta, escolheu a poça mais funda e se sentou.

Com a água turva, quente e mal cheirosa à altura de seu umbigo, Luiz se divertia como uma criança que faz algo proibido. Na verdade, sentia-se como a Alice na toca do coelho branco de olhos cor-de-rosa que leva um relógio no bolso. Só que, no caso, o dono do túnel era uma ave e o atrasado era ele. Ao fazer tal comparação, Luiz riu alto, o que deixou sua nova amiga extremamente agitada. A ave, que até então esperava pacientemente o descanso de Luiz para seguir caminho, começou a andar em direção à escuridão.

A princípio, Luiz não se moveu, pois estava muito cansado. A luz exterior, já fraca, ainda atravessava os furos da tampa do bueiro, o que lhe permitia enxergar alguns metros de distância. Quando a luminosidade finalmente acabou e Luiz Cláudio já não conseguia avistar o animal, achou prudente levantar-se para procurá-lo. Depois de muitos passos sem nenhum sinal da ave, uma leve preocupação perturbou Luiz, que olhou mecanicamente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros ainda giravam insessante e desordenadamente e provocaram uma nova tontura no rapaz.

Logo que voltou a si, Luiz Cláudio carregava uma sensação nova, de uma asfixia desesperadora. Cambaleante, tentou voltar por onde havia caminhado, mas àquela altura era incapaz de enxergar o que fosse. Estava imerso em um mal cheiroso buraco negro. A absoluta escuridão e o silêncio, apenas interrompido pelo correr da água, angustiavam Luiz Cláudio, que começou a cogitar que aquilo tudo fosse imaginação sua. Talvez nunca tivesse visto o tal animal e tudo não tivesse passado de fantasia. Porém, tudo indicava que estava mesmo ali, encharcado e preso no esgoto de sua cidade. Respirou fundo o quanto pôde e criou coragem para seguir em frente.

Luiz tentava, em vão, abrir a tampa dos bueiros que identificava. Gritava por socorro, mas tudo o que ouvia era um repetido eco que ressoava pelo imenso túnel. Sentou-se, pois, embaixo de um bueiro. A fome e a sede que já o acompanhavam ficaram ainda mais fortes. Para distraí-las, Luiz decidiu cochilar um pouco. Acordou com o som de passos próximos ao local onde estava. Gritou o mais alto que pôde, até que uma senhora de idade – não entendendo bem o que se passava – ligou para os bombeiros, que, em pouco tempo, resgataram o rapaz.

Na manhã seguinte, o movimento habitual em nada fazia lembrar o que se passara no dia anterior. Até mesmo no ponto de ônibus que Luiz Cláudio costumava freqüentar, tudo estava igual. O veículo, que antes deixou a todos esperando, passou no horário exato e o dia seguiu normalmente. Ao cair da noite, com a rua vazia e silenciosa, saltou, de dentro do bueiro, a ave. Saiu, negra e vistosa como antes, e ruidosamente voou para longe dali.

quarta-feira, 12 de março de 2008

História de um pedido

Lembro bem, na época de faculdade, quando as amigas chegavam, com os olhos brilhando, para me mostrar a novidade no dedo. Algumas eram de ouro, outras de prata, mas tinham até aquelas feitas de coco. O sorriso? Ah, era sempre largo, sem fim, desses que revelam sintomas de um amor eterno enquanto dure. Eu não. Nunca tive uma paixão que merecesse tudo isso.

Teve o Marcelo, mas com ele foi só beijo na boca. O Léo... Conheci o Léo na praia. Três dias de sexo intenso. Chegou até a sussurrar “deusa” nos meus ouvidos. Nem gosto muito disso, mas, na carência, a gente até acha bom. Grande amor mesmo foi o Gustavo. Pena ele ter casado com a Lu, minha melhor amiga. Após um namoro de quinze anos, tinha que ser o destino deles mesmo.

É. Fato é que eu, aqui, no auge dos 31 anos, naquela fase em que peitos e bunda estão no limite da gravidade, sempre sonhei em ganhar uma aliança. Dessas bem grandes e douradas. Nem faço questão de brilhantes. Assim, mas, se tivesse, melhor. Nem faço questão de ter o nome grafado. Assim, mas, se tivesse, melhor. Nem precisa ter compromisso sério. Mas, se tivesse...

De uns tempos pra cá, cultivo essa mania besta de sonhar acordada. Vejo desde o momento da escolha dos anéis até o constrangedor pedido familiar, que, no meu caso, virá inevitavelmente carregado de: “Oh! Finalmente!”. “Menina, pensei que nem tinha jeito mais, hein?” Ando até experimentando bijuteiras na frente do espelho. Não é que minha mão recebe bem o enfeite?

Mas como meu lado prático ainda fala alto, decidi resolver a questão objetivamente. Se quero o anel, preciso querer o noivo. Encontrá-lo, encantá-lo, convencê-lo de que sou a mulher certa. Mamãe é que dizia: “Homem não tem medo de casamento, tem medo da mulher errada”. Não sei se acredito nessa balela machista, mas vou por ela.

Ontem comprei um caderno e, desde então, esboço planos que me levem ao altar. Fiz a lista dos candidatos em potencial (como é pequena), dos lugares a ir (como são chatos), das roupas a vestir (não tenho nenhuma). Já logo descartei a possibilidade de uma agência... Há que se ter algo de espontâneo nessa novela.

Algo, não tudo. Por anos embarquei na filosofia do “deixar fluir” e cá estou eu, sem ter nem por onde fluir. De forma fria, se fosse um homem, quem seria a mulher certa? Eu, de certo, não. Sheila Carvalho? Ela é só boa. Marília Gabriela? Só inteligente. Talvez Angelina Jolie. Atriz de sucesso, alma caridosa, adota filhos pelo mundo... Fora o corpo escultural, lábios carnudos sem botox (ou com?), olhos azuis e, pra fechar com chave de ouro, esposa de Brad Pitt.

Sem dúvida, ser esposa do Brad valoriza demais o passe dela. “O que é do homem o bicho não come”, diz o ditado. Mas já outro homem... Homem é invejoso, quer o que é do outro, ainda mais quando o outro é o Brad Pitt. Logo imagino o cara contando pros amigos: “Véi, peguei a gostosa da mulher do Brad Pitt”. Tá aí, já entendi tudo.

Olhos azuis resolvo com lentes, sempre quis usar mesmo. Para ter boca grande, batom vermelho. Corpo escultural, basta uma cinta – mamãe usa várias. Carreira de sucesso, pelo menos, eu tenho. Os filhos? Dispenso. Agora, um sexy symbol do lado... Quem sabe o Paulão? Ele tem experiência em teatro, pode encarnar bem o papel.

Sabe que eu nunca tinha notado como sou boa estrategista? Nada melhor para atrair um homem do que aparecer irresistível... E comprometida! Mais uma da sabedoria popular: “a gente gosta é da grama do vizinho”.

A conversa com Paulão foi como eu pensava:
– Putz, Ana, que ridículo! Não acha que está muito grandinha para sair por aí fingindo um namoro?

– Paulão, pensa comigo: você está solteiro, eu também. A gente adora bater papo, sair a dois é melhor do que essa sua mania de sentar sozinho no boteco e ficar namorando a cerveja.

– Já vi que não adianta argumentar. Na verdade, até vou gostar de passar mais tempo com você.

– Sem essa Paulão, não precisa alisar...

– Boba. Negócio fechado.

Ok. Primeira etapa vencida. A segunda, transformar-me na senhora Pitt, seria até divertido, embora caro. Estica o cabelo daqui, coloca lentes dali, maquiagem para realçar os lábios acolá. Hoje à noite será a primeira investida. Marcamos num forró, nada mais sexualmente instigante.

Paulão já estava na porta, todo soltinho com as garotas. Ao me ver, até foi bom ator. Alisou meus cabelos, beijou-me no canto da boca e disse: “Tá linda, amor!”. Entramos. Escuridão total, não era capaz de reconhecer nem o Paulão. Dançamos três xotes. Nada de flerte. Cinco forrós. Tentei requebrar mais. Sete baiões. Adeus, chapinha. Intervalo para a catuaba. Paulão se afastou, a meu pedido desesperado. Quatro xotes. Ninguém se aproximou. Mais música...

Luzes acesas. Havia apenas eu, Paulão, do outro lado da pista, forrozeando, e alguns casais que fingiam ser dança aquela ralação. Sorri. Por dentro, a solidão me arranhava. Solidão lúcida, doída. Travestida de Angelina, tive vergonha de ser eu. Na mão, nem mesmo um toque afetuoso, quem dirá uma aliança, algum dia. Só, cheguei a casa. Sozinha, permaneci. Ao som de Paulo Ricardo, chorei, só. Angelina diminuída a Ana. Antes só do que mal acompanhado? Odeio ditos populares.

Na frente do espelho, sem anel algum no dedo, fico pensando se quero mesmo ter alguém... Dá trabalho demais essa história de construir e perdoar, de todos os dias, de cultivar a relação. E discuti-la, então? Nesse ponto concordo com a turma dos avessos às análises de casal. Além disso, adoro ficar em casa de moletom rasgado e calcinha de vovó. Tá aí, chega de homens!

A partir de agora, serei apenas eu, e está ótimo. Terei mais tempo para a corrida da manhã, ou terei coragem de não correr e deixar a gravidade seguir seu curso? Poderei ler os livros que gosto, ver filmes iranianos sem ter que assistir ao próximo Rambo para compensar... Além disso, terei muito mais dinheiro para minhas viagens, minhas roupas... Viva a solteirice!

Quem sabe assim, vale aquele “quando a gente não está procurando, é que acha!”? Agora, a aliança... Ah, essa vou nesse minuto mesmo comprar, dessas bem grandes e douradas! E se tiver brilhante, melhor! Meu nome grafado atrás! Huum, vai ficar perfeito!

Retorno

Acordou com o barulho do telefone. Não costumava receber ligações naquele horário, no início da manhã. Não podia imaginar quem estaria ligando, nem porquê. Talvez, por isso, apressou-se a atender o chamado.

Levantou-se rapidamente do sofá da sala – havia dormido ali? O apartamento estava vazio — poucos móveis e muitas caixas a serem abertas, quem sabe um dia. Talvez não se lembrasse... O olhar vago, o corpo fraco, a mente perdida, a sala escura e vazia... Novamente o barulho do telefone, que pareceu ter sumido pouco a pouco um instante antes. Era uma criança. Antes de atender já sabia e as palavras pareciam sair de sua boca ainda distante do bucal.

Um choro baixinho, mas doído, indignado, contido na garganta, deixava claro: havia um menino naquele apartamento. De imediato, a cabeça se voltou para a porta entreaberta do quarto ao fundo do corredor apagado. Os passos prosseguiam junto com o olhar cada vez mais focado, discernindo gradualmente detalhes daquele ambiente próximo, à procura de algum movimento.

Foi então que por trás do choro rompeu um ruído: vidro arranhado e o ronronar de um gato na janela. Era isso.

Era Balão. O mesmo gato que um dia pensaram que podia flutuar de tão felpudo e que, por isso, houve uma época em que lhe puxavam muito o rabo, tal qual fosse o cordão que segura um balão de gás, daí o nome. Entreteve-se durante instantes com os movimentos do bicho. Do lado de fora, apenas uma chuva fina, cinza, fria, caía sobre a calçada ainda vazia pelo começo do dia. Respirou. Sentia o vento gelado entrar-lhe às narinas, um arrepio tomava conta do corpo. Ouviu passos na sala.

Abriu os olhos. Correu em direção à porta, chegou ao corredor. Com passos trêmulos, reconhecia aos poucos aqueles quadros na parede — retratos antigos, de pessoas que nunca conhecera, mas que produziam sobre ele uma impressão de respeito e altivez muito maior do que já pôde sentir pelas pessoas que passaram por sua vida. Relíquias de família, tinha certeza de que haviam se perdido entre tantos objetos deixados na antiga casa do padrasto, muitos anos atrás. Passado abandonado, ele retornava agora para presenciar o abandono do presente.

Escutou os passos cada vez mais perto. Por detrás, sentiu o menino atravessar o corredor em direção ao quarto. O menino caminhava lentamente e cada passo demonstrava um peso, um abandono indiferente tão grande... Caminhava com um movimento impecavelmente regular, repetindo a cada passo a mesma energia, a mesma postura, os mesmos gestos. Uma mesmice diferente daquela própria de todas as caminhadas; resultantes sempre da soma de movimentos muito semelhantes, mas que nunca são iguais, apenas na aparência: cada passo torna-se único pelo acontecimento ou não de um suspiro breve, pela marca de um dado olhar, movimento de cabeça, ou mesmo dos dedos da mão. Há sempre um detalhe a mostrar que a vida não cessa e que o que é vivo se mostra sempre, a cada instante, de um jeito diferente, ainda que mínimo, pois nunca deixa de reagir ao ambiente das coisas, de fora ou de dentro. Pois, o caminhar daquele menino dizia exatamente o contrário. Era dono de uma mesmice inerte, morta.

Era o mesmo caminhar de quando Balão foi embora sem porquê. Soube apenas que um dia deixaram a janela aberta e o gato, tal qual o nome, foi-se, seguindo a corrente de ar que saía à rua, que dava pro vento, que dava pra mais lugares ainda, menos pra casa. Era o mesmo caminhar de seu filho, no dia em que a separação tornou-se assunto público e certo. Seu filho indo para o quarto, em direção à janela, talvez para ver a rua, talvez para mais lugares ainda.

Era sempre o mesmo caminhar. Mas, os seus meninos já não havia mais. Um cresceu, o outro se mudara. Ainda assim, tinha um menino naquela casa.

Olhou para a porta do quarto. Sabia que seu movimento natural seria seguir pelo caminho oposto, sair dali. Essa foi sempre a sua escolha, desde que, ainda jovem, deixou a mãe, os irmãos e o padrasto. Foi também pela 'escolha' que, em outra época, havia se trancado naquele apartamento. Não precisaria mais de ninguém. Não precisava de respostas.

Mas era diferente dessa vez. Tinha que encontrar o menino, saber quem ele era, o que estava fazendo. Seguiu então pelo corredor, notou que não havia mais quadros na parede, a casa estava em sua perfeita ordem. Chegou ao quarto. No cômodo quase vazio, apenas uma cama desarrumada e algumas caixas fechadas. Olhou cuidadosamente ao redor, não havia nada.

Sentou-se. Da janela, um pequeno feixe de luz iluminava e aquecia seu corpo, a chuva já havia cessado, assim como talvez as más lembranças teriam ido embora. Talvez fosse o momento de sair. Estava concentrado, quando um novo ruído o despertou, doce, fraco, suplicante — era o ronronar de Balão, que estava ao pé da cama e saiu em direção ao corredor para não mais voltar, ele sabia. Sabia também que, como o gato, o menino também estava naquele quarto. Debaixo da cama? Agachou-se, deitou o corpo no chão, estendeu o braço. Restava apenas puxar o lençol, com um movimento.

Acordou com o barulho do telefone.

Em busca da verdade interior (Parte 1)

Onde estou? Meu Deus, quantas caixas! Tem de todas as cores! Umas são grandes, outras pequenas, algumas diminuem e aumentam de tamanho até ficarem gigantescas... Ai! Agora estão caindo, me apertando contra outras. Estou sendo esmagada! Socorro! Não tenho para onde fugir... Tudo vai explodir! Aaaaaaaahhhh!

Já era a quinta vez que Sônia tinha esse sonho. Ela é um ratinho no meio de uma confusão de formas geométricas. E pior, tem a impressão de que pensa como um ratinho, seja lá o que isso queira dizer. Em alguns momentos, até tem consciência de que está sonhando, mas, em outros, vem a sensação de que tudo vai explodir a qualquer hora. Desde a primeira vez, achou estranho sonhar com tal coisa, mas nunca tinha parado para refletir sobre o assunto. Porém, nessa noite, ficou especialmente curiosa. Havia de existir alguma explicação para aquilo.

Pegou um livrinho que sua irmã guardava na gaveta de seu criado mudo: Dicionário dos sonhos. Sempre soube que ele estava ali, mas nunca tinha tido vontade de abri-lo antes. Foi direto ao índice. Letra R... Ratazana! Não é bem isso, mas vá lá. Página 323. “A imagem de ratazanas percorrendo túneis pode ser ao mesmo tempo fálica e anal.” Ahn? “Quem sonha pode estar sentindo culpa ou desconforto em relação à sexualidade, ou mesmo uma paixão reprimida.”

Mas como assim? Eu tenho namorado, estamos até pensando em nos casar... Não tenho curiosidades com essa coisa de mulheres, até porque já vi que não gosto. Experimentei duas ou três vezes, sendo que em uma delas eu estava bêbada... Deixa pra lá. E essa coisa de fálica e anal? Credo, deixa o Pedro ouvir isso, vai dizer que tem uma explicação perfeita e um modo de resolver...

Mas e as caixas? Deixa ver... Hum, página 125: “Suas cores querem dizer uma surpresa agradável ou desagradável”. Ótimo, começamos bem. “Abundância se estão cheias, pobrezas se estão vazias”. Mas e se nos comprimem? Não diz... “Se tiver espelhos, nos indica que algo vai acabar bem, ou mal”. Ok, as caixas não significam nada...

Cansada e confusa, Sônia esqueceu o assunto até o fim do dia. Aliás, lembrou só de comentar com uma colega no trabalho que disse que ela devia se cuidar porque é batata, sonhar é um aviso do inconsciente e aprender a explicar os sonhos é mais útil que fazer terapia... Será? Na hora de dormir, Sônia decidiu que ia se concentrar no ratinho, para ver se o sonho se repetia... Adormeceu sem perceber e dessa vez o roedor estava dentro de uma caixa grande, metálica, fria, parecia em movimento... Era um elevador! E estava ficando cada vez mais apertado, as paredes estavam cada vez mais próximas... Droga, vou ser esmagada!

Acordou. Era sempre assim. No clímax da situação, o susto acabava fazendo com que Sônia voltasse à consciência. Olhou as horas, eram duas e dois. Nossa! Que horário mais enigmático para a interrupção do sonho! Sônia se sentia em meio a um monte de informações importantíssimas para o rumo que sua vida iria tomar dali pra frente. Lembrou-se do que havia dito a colega e tratou de anotar tudo o que lembrava do último sonho, com o máximo de detalhes possíveis. De toda forma, precisaria de alguém mais experiente para analisá-los...

Ao pesquisar sobre o assunto na internet, descobriu um site elaborado por ‘analistas de sonhos’, que falava da importância de se deixar um lápis e um bloquinho sempre na cabeceira da cama, além de um abajur, que evitasse a utilização de uma iluminação muito intensa. Tudo isso colaboraria para que as informações não se perdessem até a transcrição completa do sonho. Esse site era mesmo um achado! E mais: fuçando seus diversos links, Sônia acabou encontrando um jeito de enviar seu próprio sonho para ser analisado por eles! Não podia deixar de ficar eufórica...

Foi direto ao assunto: “Olá. Todas as noites me transformo em um rato. E sou perseguida por diferentes objetos. Caixas, elevadores, todos sempre me comprimindo. Preciso de ajuda! Obs.: não tenho problemas com a minha sexualidade. Obrigada.” Ao clicar para que a mensagem fosse enviada, Sônia teve a sensação de estar se desnudando. Aproveitou que estava conectada e foi checar seu e-mail. Quem sabe a perseguição das caixas não tinha causa no volume de mensagens não lidas?

Não se passaram dez minutos desde que Sônia enviara o depoimento, ela voltou ao site. Para sua surpresa e constrangimento, seu texto era o primeiro na página, sem uma única edição. E a resposta era não menos desconcertante. “Sônia precisa lidar com os excessos em sua vida. Ser perseguida e sentir-se inferior ao agressor é estar acuada em suas atividades cotidianas. Ser um rato aponta para um complexo de inferioridade e uma tendência a reprimir seus impulsos sexuais.”

Quantas vezes vou ter que dizer que não tenho problemas com o sexo? Mas, é verdade, andava mesmo oprimida por tantas tarefas. Agora, por exemplo, seu telefone já registrava cinco chamadas não atendidas que, com certeza, eram do escritório de advocacia onde era estagiária.

Academia, estágio, faculdade e aula de canto. Todos os dias eram a mesma coisa. Nos fins de semana, se apresentava junto ao coral de que fazia parte. A vida de Sônia era mesmo muito agitada. Mas a hora do café da manhã era sagrada. Era o momento em que se dava ao luxo de assistir um pouco de televisão, para não ficar completamente alienada do mundo. Afinal, é a mídia quem dita o que é relevante e o que não é. Se estivesse por fora, não teria assunto com ninguém!

Em certa manhã, Sônia estava zapeando quando teve a sorte de parar em um canal num momento decisivo! Um senhor de mais ou menos 60 anos, cabelos brancos, se despedia do telespectador após um programa sobre ‘O sentido da vida’ e terminava, bastante sorridente, com a seguinte chamada: “Tem gente que vive para o trabalho. Não tem outro assunto e não faz outra coisa. E é para essas pessoas que o consultor comportamental promete dar uma força na próxima sexta-feira.” E não era uma pessoa qualquer não! Além de ‘terapeuta’, ele era deputado federal!

Em busca da verdade interior (Parte 2)

Que sorte era ter encontrado aquele programa de TV, aquele site e aquele livrinho da irmã... Tudo se ligava perfeitamente! Que maravilha o poder da informação! No programa seguinte, o deputado explicou que o mundo era como um organismo vivo, uma rede, em que cada um influencia o bem-estar dos outros. Mas a conexão só se completa com perfeição se todos estiverem em sintonia interna. O que não acontecia com os viciados em trabalho, que, muito ligados às tarefas externas, deixavam de ouvir seu ritmo natural e desequilibravam a cadeia.

Viu só? Exatamente como a guru do site de sonhos disse, não estou suportando a carga de tarefas que me estão sendo impostas. Preciso me reequilibrar! Sônia foi dormir entusiasmada com a idéia de dar um novo rumo a sua vida. Sonhou, e se viu em uma festa. Estavam lá todas as pessoas que conhecia. De repente, Sônia sentiu-se mal e vomitou em si mesma. Estava empapada, dos pés à cabeça. O estranho é que não havia fedor. Procurava um banheiro para se limpar, mas o único na casa estava ocupado e as pessoas lá dentro se recusavam a sair. Sônia começou a gritar desesperadamente. Acordou sentindo nojo de si mesma.

De qualquer forma, precisaria deixar o nojo de lado e anotar o sonho. Olhou para seu criado mudo e estavam todos lá: o lápis, o bloquinho, o abajur. Também estava o relógio, que marcava 88:88... O quê??? Só podia ser um sinal, e muito assustador! Sentia muito medo quando pegou, tremendo, o relógio em suas mãos. Mas, depois de poucos minutos, chegou à conclusão de que era a bateria que estava fraca mesmo...

Ai, ai, ai, já tinha perdido tempo demais com aquele episódio! Sem se permitir outras distrações, começou a redigir o sonho. Tomou o cuidado de destacar as palavras-chave e as situações mais relevantes, que lhe trouxeram sensações fortes durante o sonho, do jeitinho que ensinava o site. Essas preocupações ‘formais’ acabavam diminuindo a ânsia de vômito que ia e voltava enquanto redigia...

Pronto. E agora? Bom, acho que o primeiro passo é consultar o Dicionário dos Sonhos. “Vomitar, página 412: necessidade de expulsar sentimentos negativos que o acompanham. Quem vomita em sonhos precisa rever suas escolhas.” Isso! Está na hora de botar pra fora todo o estresse que carrego e começar uma vida nova!

A primeira coisa que faria era pedir férias no estágio. Já havia um ano e meio que trabalhava sem descanso. Trocaria também as aulas na academia por treinos de dança de salão, algo mais, digamos, cosmoenergizante. Já era um bom começo. Mas e os números que agora a assombravam? Um dia acorda de um sonho às 02:02, no outro avista um expressivo 88:88 no relógio. Claro, o site. Lá eles saberiam tudo!

“Caríssimos analistas. Os conselhos de vocês mudaram a minha vida. Agora estou em busca de mim mesma! Mas persistem algumas dúvidas. Tenho sido surpreendida com estranhas combinações numéricas em minha vida. 02:02, 88:88. O que isso quer dizer? Sônia”. A resposta: “Sonhar com números é sorte com dinheiro. Ou azar. Cuidado”. Só isso? E tão ambíguo? Bom, o jeito era continuar atenta às mensagens que o sono lhe trazia. O pior é que, com essa história de acordar à noite e perder horas de sono em anotações, Sônia andava sonolenta durante o dia.

Na segunda-feira, acabou sendo pega dormindo em sua mesa, no horário de trabalho. O que seus colegas consideraram alarmante foi que, quando cutucada por um deles, não aceitou parar de dormir, pois isso significaria interromper um sonho maluquíssimo, que, provavelmente, teria um significado excepcional! Só acordou quando viu que sua chefe estava para chegar ao recinto e percebeu o quão ruim seria caso esta a visse dormindo. Não via a hora de as férias que já havia solicitado chegarem. Assim teria mais tempo para sua busca por si mesma.

Sônia definitivamente não conseguia pensar em outra coisa, a não ser em sonhar e descobrir o significado de seus sonhos. Refletia sobre isso o tempo todo, em casa, na faculdade, no trabalho e, até, nos treinos de dança que iniciou. Passava o dia imaginando o que iria sonhar na próxima noite, que estava ainda tão longe. Até que concluiu que não precisava esperar tanto. Começou a dormir em qualquer lugar, a qualquer hora, e explicava aos amigos que essa seria a única forma de encontrar a chave para o seguimento de sua vida.

Essas atitudes de Sônia começaram a preocupar as pessoas à sua volta, principalmente Pedro, que passou a ouvir freqüentemente da namorada conversas atravessadas sobre a relação sexual dos dois. Sônia chegou ao cúmulo de dormir durante uma transa! Questionada pelo namorado, disse que ele devia era agradecer, porque aquela atitude poderia ser a salvação do relacionamento deles. “Salvação? E quem disse que este namoro precisa ser salvo?” – se irritou Pedro – “Tudo bem que o sexo nunca foi grande coisa, mas o amor pede paciência mesmo”. Sônia tomou um susto. Sexo ruim? Que história é essa? Logo ela, que sempre se gabou de seu apetite sexual...

A partir daquele dia, Sônia e Pedro decidiram se separar. Ela achou melhor. Descobriu que seu problema sexual, que agora percebia – os sonhos indicavam desde o começo! –, tinha nome: Pedro. Desta vez, sim, sua vida entraria nos eixos! Como estava de férias do estágio, decidiu também perder algumas aulas na faculdade. Agora mesmo, Sônia está dormindo. Disse aos pais que não poderia ser interrompida, estava entrando em uma definitiva incursão em busca de sua ‘verdade interior’. O engraçado é que ela deixou a televisão ligada. Precisava ir para dentro de si mesma, mas não podia correr o risco de voltar dali a dois dias, e não saber de mais nada à sua volta...

Todas as mãos

Devaneadores diante de um espaço aberto, para idéias partilhadas. Eis o que somos. Devaneando, escrevemos, em um exercício infindável com as palavras.

percurso, desastre, razão, letra, migrantes, ausências, segredo, chão, passeio, confusão, certezas, liberdade, muros, ilusão, restos, condução, reconstruir, viagem, círculo.

A palavra Devaneios é a chave deste blog. Foi escolhida primeiro pela sonoridade (e leveza) da palavra em si e depois pela amplitude de significados que carrega. Graças a isto, Devaneios combina com cada texto em particular.

parceria, discurso, sina, vontade, escrúpulos, descanso, perdição, navegar, janela, frágil, sobressalto, costura, disfarce, escapar, quiçá, corredor, sombra, sinestesia, luz.

Não buscamos um só sentido. O que desejamos mesmo é que sentidos sejam recosntruídos a cada novo olhar e apontem para diferentes direções.

respiro, soluços, horas, instinto, acaso, fatalidade, idéia, fluxo, legado, substância, sementes, perigo, análise, crença, precaução, passagem, silêncio, solidão, nuvens, soneto.

Nossa forma de escrever é um tanto peculiar. Optamos por um exercício de construção coletiva, a quatro mãos. Tomamos como inspiração a proposta de artistas plásticos que constroem um mesmo quadro a partir de contribuições diversas: um artista segue as 'pinceladas' deixadas pelo primeiro e deixa novas propostas a serem executadas.

deslizar, conversa, barco, deriva, cavaleiro, moinhos, vento, chapéu, cascata, céu, véu, interrogação, futuro, tempo, aliança, clarão, realidade, direção, labirinto, sopro.

Aceitamos o desafio de tentar algo parecido na escrita. Nossa equipe é dividida em duplas (que variam a cada nova rodada) em que cada devaneador tem suas contribuições intercaladas com as do colega. O primeiro a escrever tem um espaço de mil caracteres para desenvolver parte de um tema, e o outro acata a idéia lançada e desenvolve-a até um momento seguinte, e assim por diante.

sem, vida, sono, tudo, troca, destino, memória, devires, música, expresso, atos, orgânico, assistência, voltar, atenção, espuma, ritmo, gratidão, lado, parte, todo, fim, solavanco.

A partir desses critérios, teremos um novo texto a cada semana. Devaneie conosco!