quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Hoje coroaram-me com um cone

O dia de hoje começou estranhamente alegre. Apesar da forte tempestade na noite de ontem – que parecia querer me carregar, tão fortes eram os ventos que a acompanhavam –, a manhã trouxe um céu descoberto e ensolarado. Crianças divertiam-se na Praça dos Imperadores. Vez ou outra corriam em minha direção, atrás da bola emborrachada que acabava de deitar ao pé de minha base. Incomum seria se desviassem o olhar para o alto. Quase sempre passo despercebido.

Agora, como antigamente, deparo-me, não raras vezes, com casais que, no banquinho da praça, mãos entrelaçadas e olhares perdidos, trocam versos que já eternizam um amor recém-nascido. Alguns deles datam vinte e poucos anos, outros já carregam peles enrugadas e cabelos grisalhos. Parece-me que todos possuem a alma cândida, assim é com os enamorados, ao menos nesse momento de tamanha cumplicidade.

Também eu experimentei tal gozo, de amar e ser correspondido. Surpreendeste-te? Considero natural o possível sobressalto de meu excelentíssimo interlocutor, ao escutar essas palavras doces vindas da figura que te fala. Quando ouço proferir meu nome, também eu estremeço, tão forte e temeroso me soa. A sensibilidade veio-me mais tarde, com o passar dos séculos, mesmo que, agora sim, seja, literalmente, um monarca em pedra. O pouco que trago comigo daqueles tempos é minha inseparável úlcera duodenal, que ainda me causa insuportáveis dores de estômago.

"O pouco que trago comigo...". Está aí uma boa questão. Dessas 'cabeludas', que nos fazem pensar sobre os mistérios do tempo, a imprevisibilidade das coisas, a vida, a morte... Quem diria que da grandeza das conquistas restaria o mito da minha altura, que da glória do meu trono mais fama se daria ao meu cavalo branco, que de 'imperador da Europa' ficasse eu intitulado o patrono dos loucos. Aliás, piada a qual não entendo, aguardando ainda explicações, quanto mais pela numerosa lista de melhores candidatos ao cargo, haja vista... bem, esses mesmos que tu, amigo, acabas de te lembrares. E mais, aguardo o dia em que, assim como da carne passei à pedra, o mesmo se dê ao contrário, de modo que, tendo retornado à vida e ao poder de outrora, possa mandar cortar a cabeça dos engraçadinhos que menos respeito que à autoridade demonstram em relação à própria vida.

Ah, soubesse eu das injustiças do poder! Conquista-se o mundo num momento (para, no outro, perdê-lo... Essa parte do jogo eu já conhecia), luta-se com primor, morre-se com dignidade, com a confiança sincera e tranqüila de que é possível ter um descanso honrado e solene, quando então te fazem de palhaço de feira, de praça, de colégio, do que for, reproduzindo tua imagem em matéria inerte, vulnerável às atrocidades dos inimigos mais desprezíveis, até às lesmas! Aliás, animais estes com quem tive o desprazer de conviver, tanto em vida, quanto por baixo desta terra úmida que me comeu e por dentro deste bronze rígido que me sustenta.

Se na época que corre sou apenas mais um personagem histórico sobre um cavalo – este sim, numa pose de absoluta coragem –, lembro-me de meus triunfos com memória precisa e fiel. Foram tantas as glórias em batalhas, mortes justas em territórios diversos, conquistas que ninguém além de um exímio comandante e estrategista poderia alcançar. Certo estou de que não revelo aqui novidades, bem sabes tu que vitorioso fui, ao menos em vida. Vide as deslumbrantes representações que futuras gerações têm o privilégio de cultuar nos museus – estes sim, dignos de uma figura de tão alto escalão –, graças a meus grandes artistas oficiais.

Todavia, essas recordações, de um tempo quando tudo eram flores, escoaram aos mais profundos baús, no momento da maior – sem dúvida, a maior – humilhação de todas as eras. Talvez mais grave que a infelizmente memorável derrota em Waterloo, hoje coroaram-me com um cone. Faltam-me palavras suficientemente plausíveis para descrever essa cena inimaginável.

Após meus depoimentos anteriores, nos quais até de amor falei, percebeste, certamente, que não sou o que muitos pensam da minha pessoa. Concordar-te-ás com este pobre injustiçado, querido interlocutor, que tal ousadia é enormemente humilhante quando se trata de alguém uma vez auto-coroado com ornato áureo, como é, claro está, o meu caso.

Um cone de via comum... Ora, qual de teus tataravós ousaria tentar tamanha picardia para cima de ‘moi’? Certo, pois, melhor que um chifre, mas muito mais gravemente emblemático que tal lúbrico pormenor. Um cone de via: lembrança de que o trânsito é a lei de tudo. Que a História é a própria estrada a rodar, e, de tal modo, muda-se a paisagem pela luz que varia e com a inclinação do olhar. Ainda assim, ‘monumentos’ como eu provavelmente sempre estarão no caminho – e tu, mero risonho leitor, destinado ao pó que já não és? Touché!

Um cone de via comum. Só espero que, assim, não venhas aqui ‘amarrar a tua égua’.