quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Ela dormiu pensando em terminar

Ela dormiu pensando em terminar. Não que o sentimento tivesse acabado. Pelo contrário, botaria um ponto final porque era louca por aquele homem. E olha que ele nem era lá essas coisas. Baixinho, barrigudo, e ainda tinha as costas corcundas. O problema é que ele era inteligente demais. Comentários perspicazes, auto-confiança. E, assim, o que para ele era solução transformava-se no ponto onde começavam os problemas dela.

 

A questão é que estavam se vendo demais. Desde que ele teve a idéia de almoçar na casa dela – coisa que ela estimulou tanto quanto pôde – começou a sentir-se cansada. Não dele, mas do esforço que fazia ao seu lado, para parecer mais inteligente, menos apegada, mais magra, menos prolixa, mais sexy, menos romântica. Para falar a verdade, era também um desafio que ela se impunha.

 

Seria o primeiro relacionamento a ser rompido por iniciativa dela. Em todos os outros, embora percebesse muito antes de seu parceiro a decadência da relação, mantinha-se firme, num esforço absurdo por permanecer comprometida. Dizia ser generosidade e renúncia, desconfiava que fosse pânico de ficar sozinha. Na manhã seguinte, quando entrou no banheiro, um terrível clichê deixou-a ainda mais confusa: ele havia deixado as escovas de dente.

 

Sentiu um misto de euforia e melancolia. Desejava comemorar a vontade dele de estar próximo. Mas temia o risco de que aquela atitude não fosse mais que comodismo. Conhecia a preguiça dele. Embora morassem muito próximos um do outro, ele sempre arrumava um jeito de se esforçar cada vez menos para vê-la. O almoço diário era uma dessas estratégias. Aliás, para ela, toda essa rotina revelava um “quase casamento decadente”.

 

Não queria esquecer também os motivos que a levaram a dormir tão desacreditada de tudo. A displicência dele; as mentiras nas madrugadas de sábado, que eram facilmente flagradas, depois, em meio às conversas com os amigos em comum. O comportamento dele era muito instável. E talvez fosse esse o motivo mais convincente para se ver livre daquela relação. O próximo encontro seria dali a algumas horas. O cardápio daquele dia fora escolhido especialmente para marcar a conversa derradeira. Filet ao molho madeira.

 

Ele chegou na hora marcada, como sempre. Este, entretanto, foi o único ponto em comum com os outros dias. A começar pelas gentilezas: trouxe uma sobremesa, a preferida dela, torta de limão; elogiou o seu vestido; disse que parecia mais magra. Essa sensibilidade tirou-a completamente do prumo. O interessante é que, enquanto as palavras e gestos eram, assim, delicados, o semblante parecia endurecido e triste. Ações mecânicas, ela poderia dizer. Assustada e óbvia, não se conteve: “Você está diferente!” A resposta, tudo com o que ela não contava: “Desculpe querida, mas não podemos mais continuar juntos.”

 

Em frações de segundos, uma dezena de hipóteses passaram pela cabeça dela. Ele teria arranjado outra, teria desgostado, estaria cansado do ciúme doentio dela. Precisava encontrar uma justificativa para aquilo. E quanto mais pensava, mais angustiada e cheia de dúvidas ficava. Quando as lágrimas começaram a escorrer, prendeu a respiração e deixou que ele falasse: “Você merece um homem melhor que eu”.

 

A resposta dele era exatamente a mesma justificativa que ela se apresentava todos os dias para terminar o relacionamento. O fato é que contra esse argumento ela mesma já havia desenvolvido todos os outros. Ele era indiferente, frio. Mas compensava a ausência sentimental com uma presença física diária. Às vezes chato demais, outras tantas, um dissimulado. A parte boa é que com o fingimento ele a alegrava, enquanto fazia de conta adorar as piadas dela e se entreter com as histórias da família, pelas quais, invariavelmente, ele não tinha o menor interesse.

 

Refletiu por mais alguns instantes, respirou aliviada e deu por encerrado o conflito. A conversa seria mais fácil do que imaginava. “Amor, o filet ao molho madeira está delicioso. Vamos comer.” Muito constrangido, exatamente como ela previra segundos antes, ele silenciou e começou a servir.

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