quinta-feira, 17 de abril de 2008

(Re)encontro

Posso reconhecer sua risada alta e prolongada do início do corredor. Logo adiante, um feixe de luz denuncia que uma porta está semi-aberta. Outras vozes também parecem vir lá de dentro. Bom saber que você tem companhia e pensar que está feliz. Será que ainda mantém os cabelos longos? Ainda gosta de sorvete de chicletes depois do almoço? Canta Roberto Carlos debaixo do chuveiro? As mínimas coisas me fazem falta, suas piores características.

Às vezes tenho vontade de ver aquele filme com o Tom Cruise, que você me fez alugar tantas vezes, até não suportar mais. Estranho ter saudade dos seus abraços extremamente apertados, das suas conversas intermináveis e cansativas, da sua carência notadamente excessiva. Acho que hoje já não me zangaria se você começasse a contar aquela velha estória pela milésima vez. Talvez até achasse graça.

Ouvi dizer que você agora virou artista e anda fazendo coisas realmente bonitas. Achava mesmo que levava jeito pra arte. Sua forma de ver o mundo sempre foi bastante peculiar. Este quadro, será seu? Acho que não, você costumava preferir as cores mais quentes. "Cores de dias de sol, pra iluminar a vida da gente", dizia.

Me contaram também que anda fazendo do mundo poesia. Não duvido. A caneta sempre foi a extensão de seus dedos. Ao fim de sua clássica e freqüente catarse, já podia prever um papel rabiscado de sentimento e os olhos lacrimejados. E aí, lá vinha você, me puxando pelas mãos até a sala. Eu ficava no sofá, à meia luz, você ocupava todo o espaço, gesticulando desse seu jeito tão seu filosofias acerca da vida.

Eram palavras e questionamentos muito complexos, sempre intensos. Nunca entendi exatamente o que queria dizer. Mesmo assim, achava bonito e me sentia até instigada a mudar em mim algo que eu não sei bem o quê. Sinto saudades. Tanta que dá vontade de sentar neste sofá, que não é bem aquele, e torcer para que saia pelo corredor recitando verdades líricas à sua maneira. Mas, por favor, cuidado com as paredes, aqui elas são tão brancas...

Não deve ser fácil tornar compatíveis o branco e você. A tranqüilidade que a cor traz costuma passar longe do furacão de sentimentos que você é. Talvez aí dentro desse quarto seja diferente, até mais agradável. É certo que há mais cores, só pelo fato de haver gente. Gente como você.

Quanto mais me aproximo da porta, mais as vozes se tornam música, e já posso ouvir toda uma ópera, da qual é protagonista. Te imagino vestida com um tecido longo e solto, bem vermelho. É como acredito que esteja agora. Engraçado. Não consigo te enxergar oito anos mais velha. É como se esperasse encontrar aquela mesma imagem que tenho gravada em minha memória.

Este cheiro... Não me é estranho. Dificilmente conseguiria me lembrar de sua origem exata, mas as sensações que o olfato nos permite reviver são sempre fortes. A impressão é que mistura fragrâncias de vários momentos da gente. Ai, quero encher o peito disso e não deixar escapar nada, só pra ficar assim, sufocada de lembranças boas. Cheiro de mato lá da fazenda, cheiro de baunilha do bolo da Maria, cheiro de madeira daquele baú, cheiro doce de você. Será que ainda é doce?

Só espero que não fique amarga comigo. Naquele dia, sentada dentro do carro, esperei a eternidade para ter coragem de te deixar aqui. Foi preciso que o guarda dissesse que o horário já não permitia mais visitantes. Oito anos desde então. E, se olharmos bem, oito é o infinito de pé. Tempo que levei para apaziguar os meus eus. Queria ter também a capacidade de inventar realidades. Às vezes, é duro estar no mundo.

Olhos fechados, boca calada, ouvidos tampados. Acho que a omissão me ajudou a entender tudo o que aconteceu com você, com a gente. Daqui já te ouço. Não vejo a hora de alcançar a porta pra poder te ver e te falar. É tanta coisa... Difícil me aproximar desse momento pelo qual tanto espero e que, ao mesmo tempo, tanto temo.

Cada passo requer uma coragem que não sei ao certo de onde vem. Também não posso calcular até quando ela virá. Confesso que, em meu caminho até aqui, não foram poucas as vezes em que quis dar meia-volta e fugir desse reencontro – ou melhor, encontro, uma vez que hoje ambas somos necessariamente outras. No entanto, minha consciência e meu coração me levaram a seguir adiante.

Percebo agora um movimento de porta, uma sombra no chão. Hesito e já não consigo identificar minha própria vontade. Quero e não quero que seja você ali. Sinto um frio esquisito, que sobe pelas minhas vértebras e me faz encolher os ombros. Tento aquecer minhas mãos geladas, porque não quero que estejam assim ao encontrar as suas.

Ao erguer a cabeça, me dou conta que já estou no meio do quarto. Giro à sua procura. São muitas cores e sons, quanta gente. Parece que já me conhecem há anos. Mas, que cor é você? Não seria capaz de reconhecê-la? De vestido branco, meu Deus! Você! Como poderia imaginar? Linda! Da varanda do quarto, recitando poesias aos amigos no jardim. Acho que nem imagina que estou bem aqui atrás. Os cabelos continuam compridos, mas tenho certeza que você mudou. Pela voz. Não era tão pacífica.

Você se abaixa em agradecimento ao público, exatamente como fazia após as declamações filosóficas na sala lá de casa. Mas sei que está diferente. As mãos, visivelmente macias, agora carregam rugas. Acompanho cada movimento seu. Está leve. Ao se virar, imediatamente seu olhar se fixou no meu, como se já soubesse que estou aqui. Minhas pernas não respondem, é preciso que você se dirija a mim.

Que abraço bom... Daqueles que chegam a apertar a alma, que não deixam caber ressentimentos, explicações, mágoas. Queria um desse há tempos... Um beijo em cada bochecha. Delícia! Deve ter aprendido isso aqui, né? Está ainda mais doce. Impressionante como sua gargalhada continua a mesma, é excesso que preenche de coisa boa. "Fátima, que alegria te ver!", você diz, terna, exalando vida.
A alegria está em mim. Não sabe como é bom te ver assim, tão feliz, embora eu não me chame Fátima.

Um comentário:

Patrícia Ferraz disse...

A gente nunca sabe a intenção de quem escreve e se há realmente uma intenção...
De toda forma, quero registrar a minha experiência com este texto, até para que os autores (que não sei quem são) saibam que há leitores! rs
A narrativa quebrou várias vezes as expectativas que construiu em mim. Quando a narradora se revela mulher, estranhei muito, porque como tudo levava a crer que a outra era do sexo feminino, esperava que o narrador fosse homem...
Depois, estranhei quando a narrativa continuou cena adentro, porque tudo levava a crer que acabaria com uma reflexão quando os olhos das duas se cruzassem. A narradora, não. Contou-nos os momentos de contato, como se estivéssemos nos pensamentos dela.
Também quebrou minha expectativa quando a relação das duas se mostrou superficial, porque a forma como a narradora falava sobre a outra parecia que era um reencontro de mãe e filha, irmãs, enfim, duas pessoas muito próximas, que se penalizaram com a distância.
Não sei se o objetivo era mesmo esse, se entendi certo. Mas devaneei...