quarta-feira, 9 de abril de 2008

Ele podia tudo

...se você deixar o coração bater sem medo.. se você deixar o coração bater sem medo... Claro como nunca foram lidos todos os sinais do instante e no frenesi do tempo que pára sua agitação, levantou o pó da estrada: nuvem cigana. Daria a volta ao mundo, parando em cada esquina, adentrando cada beco, rua, ruela. Queria cobrir a Terra com a poesia de seus pés inquietos. Queria saber era de portas se abrindo, sentir o aroma fresco da gargalhada de todas as crianças, contar os calos nas mãos de cada velho, cada senhora. Delas, de cada moça, menina, mulher, queria o estoque infinito do prazer mais doído. Ver tanto até gastar os olhos, pecar tanto até consumir toda maldade, restando no fim a barba branca, emaranhada de sutilezas. Cantarolar saudações e despedidas, acumulando uma dose tão fatal de saudade, que seu coração um dia simplesmente pararia de bater, distraído com o selo de uma carta antiga. Queria dar a volta ao mundo e voltar pra casa pra colocar a mãe no colo, também o pai, quem quisesse, a família inteira, pra que reconhecessem nele o avô perdido, o bebê a caminho.

Não sabia ao certo a que lugar pertencia, queria restar sempre na lembrança de onde quer que fosse, de quem quer que o visse. Assim também desejava deixar em si a alma dos instantes vividos, numa sofreguidão de quem acreditava ser cada um o melhor momento. Não negava o passado e os desencontros, a infância e as descobertas, as antigas horas e os ensinamentos de cada passo. Mas não podia concentrar-se no que não fosse o presente, o não saber, o ser levado. O resto, que a pele cuidasse de gravar, como fez até agora. Estava decidido, partiria. E para não fazer daquele o momento final, mas apenas um começo bom, não deixaria avisos. Fecharia as janelas da casa imaginando beijos nos rostos queridos, saudando as horas abandonadas das alegrias que ali o trouxeram. Olhando longe, saiu.

Bateu a porta, o pé no chão, e olhou pro lado pra ver o sol que caia atrás das montanhas. No céu, o traçado de algumas estrelas desenhava um mapa de sombras e luzes dançantes. O vento frio anunciava o silvo distante das cidades do litoral. De lá para ‘outro lado’ era um passo. Era sempre um passo. Assim, seria sempre o seu caminho. Pé ante pé, infatigáveis passos maiores do que a perna. Mas, havia ela. Ele sabia que não importasse o tanto de coisas que ele metesse no buraco da sua curiosidade infantil, ele não deixaria nunca de ser sem fim, sobretudo por causa dela. Não importava. Quantas coisas deixaria de contar por causa dela? Era a pergunta que a garota lhe fazia, do outro lado da rua. O som dos carros ruminava uma falta de sentido que se completava no vacilo de sua boca. Mas, e aquela boca?

Estranho como bastava um pedaço de corpo e toda essa distância transformava-se. Se permitisse a recordação da pele fina e rosada daquele sorriso, seu afã de estar longe se esvaía na mesquinhez da necessidade e do apego. Mas era o sorriso mais triste e sublime, a boca mais amarga e amorosa. Era a sua, ainda que não tocada. Era a dona, sempre e mais ausente. Quase conseguia ouvir a música dos passos diminuindo enquanto a apatia do querer crescia, insuportavelmente. Talvez a escolha em sair significasse fuga, talvez a liberdade física fosse desculpa para livrar-se da dependência estúpida, de um amor burguês demais para a sua fé clube da esquina. Pensando assim, parecia ser a escolha final. E num novo relâmpago, tal qual aquele que o tirara de casa, esquecia-se do que o motivara. Só se deu conta disso quando já se encontrava sentado ao meio fio.

‘A gente nunca foge da gente. A gente nunca foge de certas pessoas...’. E ao sorriso que a garota do outro lado da rua agora ostentava, ele respondia com um tapa que, estalando forte na cara ‘da pele fina e rosada’, prometia novos tons de vermelho, um branco de dentes estilhaçados.. a aparência febril de um sorriso amarelo. Bem que poderia ser. A gente pode nunca fugir, mas sempre podemos ir ao encontro do novo. A cada dia o mundo nascia de novo; cada pessoa um novo filme, um novo livro; a cada minuto ele ia ficando mais velho e as lembranças graves mais um minuto presentes em sua vida.. cada vez mais pesadas e ele mal já conseguia movimentar as pernas.. mas era preciso justamente correr, como sempre vira naquelas matérias babacas de jornal da tarde, era preciso correr, perder peso, ficar em forma, elevar o espírito, buscar a felicidade que reside sempre incólume no fundo esperançoso de cada um, o que de tão óbvio até uma criancinha sabe, só não sabe ninguém a qual profundidade exatamente a gente se salva. Não adianta ficar parado, correr, corramos todo, corra o mundo, em forma esse é o novo mandamento das lembranças graves, a cada segundo, bastava mexer alguns músculos na cara e um sorriso estava pronto.. ‘Paciência, meu filho, paciência’, parecia dizer o velho que atravessava a rua e bem que poderia ser ele.

Se você deixar o coração bater, lidos todos os sinais do instante, o pó da estrada: nuvem cigana. Sentir o aroma fresco de cada moça, cantarolar uma dose tão fatal, distraído com o selo de uma carta antiga. Dar a volta ao mundo, voltar pra casa. Deixar em si a alma, do passado e das descobertas. Ser levado, para não fazer daquele o momento final. Saudar as alegrias abandonadas. O traçado do vento frio era sempre um passo. Pé infantil, não deixava nunca de ser sem fim. Do outro lado da rua, aquela boca, necessária e dona. Insuportavelmente, um amor clube da esquina. Sentado ao meio fio, nunca foge de certas pessoas. A pele fina e febril nascia de novo. A gente não se salva, grave a cada segundo.

Abriu de volta as janelas, mas deixou-se ficar na calçada.

Um comentário:

Patrícia Ferraz disse...

embarquei no devaneio e acho que se lesse mil vezes, acharia mil textos nesse LIVRO! excelente começo, como não poderia deixar de ser. nenhuma novidade.
grande beijo e parabéns!