quarta-feira, 2 de abril de 2008

Mergulho

E, de repente, todos os sons parecem cessar. Um silêncio tranqüilo e aliviante toma conta da minha mente. O corpo gela, mas pouco a pouco sou acolhida pela imensidão e nela fico – ou sou deixada –, até alcançar o equilíbrio, recuperar a consciência e me largar, rumo a qualquer destino ou direção.

Posso ouvir o movimento da água, que varia de acordo com o meu próprio. Meus olhos estão fechados, mas já consigo ver o azul e as pequenas e numerosas bolhas de ar que buscam velozmente a superfície.

Ouço atentamente o ruído da minha expiração. Tento fazer com que seja mínimo e espaçado. A velocidade das batidas do meu coração acelera quando por baixo dos meus pés não sinto o fim. Deve ser parecida a sensação de voar.

Ganho coragem, abro os olhos. Sinto um ardor progressivo que acaba por fazer encontrarem, em um impulso, as pálpebras superiores e inferiores. Com os músculos do rosto ainda contraídos, vou me acostumando aos poucos com um contato mais demorado entre minha córnea e a água.

Só então reparo à minha volta. A imensidão azul estava mesmo lá, como eu previa. Azul, "a cor do céu sem nuvens" – foi o que eu ouvi uma vez, num desses momentos tão banais em que você joga conversa fora e começa a filosofar sobre o sentido da vida e das coisas. Acho graça.

Enxergo, lá embaixo, vários pontos coloridos, que se movem rapidamente. Nadam unidos, seguindo um caminho não muito regular. Penso em me aproximar, testar a reação deles. Mas, antes de ensaiar qualquer deslocamento, vejo, bem perto, um pequeno peixe azul e reluzente. Sozinho, vem em minha direção.

A princípio, não consigo definir sua forma exata. É como experimentar um problema de visão que nunca tive. Será que os míopes enxergam assim? O peixinho se aproxima e, cada vez mais, consigo perceber os detalhes de suas cores e texturas. Penso na função de cada escama e barbatana, em como seria se eu tivesse nascido peixe. Deve ser incômodo dormir de olhos abertos.

Desvio o olhar, com os pés fincados na areia e a cabeça perdida no infinito daquele azul, tão claro, tão completo, que jamais poderia deixar alcançar a totalidade de suas nuances. Cair no mar é como mergulhar no céu. O seu inverso semelhante.

Vejo a corrente azul se afastar. Percebo o perigo de me perder em pensamentos em meio a um ambiente tão estranho e misterioso. A expiração cada vez mais recorrente me lembra que meu tempo aqui é curto, cada segundo me aproxima do limite. Do meu limite. Recupero a concentração.

Sigo em direção a um coral cor-de-fogo, sei que há ali muitos segredos para se desvendar. Imagino o grande número de vidas que abriga, seres que não conhecem o mundo lá fora, o meu habitat. O oceano é mesmo um universo paralelo, que posso visitar, mas nunca fazer parte dele.

Uma corrente fria passa por mim, à altura dos meus joelhos. Como reflexo, tiro os pés do chão e me encolho, trazendo as pernas dobradas junto ao tronco e abraçando-as. Fecho os olhos e deixo que meu corpo flutue e minhas costas encontrem a superfície.

Deixo-me levar pelo movimento da água, flutuando, e assim fico por alguns instantes, que parecem durar horas. Meu pensamento divaga e eu me sinto tão leve, que posso ir a qualquer lugar que queira em um momento, e, no próximo, estar em outro, por mais distante que seja.

Escuto algo. Um som abafado, vindo de não muito longe. Isso faz com que minha mente volte ao corpo e, aos poucos, tome conhecimento de cada parte dele. Começo a agitar os braços e as pernas. Presto atenção em cada movimento, cada dobra, cada estiramento. É como se, pela primeira vez, eu tivesse seu controle pleno e com ele pudesse fazer o que quisesse.

O barulho torna-se cada vez mais nítido. É provável que seja uma embarcação que se aproxima. Se ela for grande... Uma enorme tensão toma conta de mim. Abro os olhos, mas não posso ver mais de dois metros à frente. É cada vez mais difícil controlar a respiração, que parece implorar por oxigênio.

Lembro-me da primeira vez que entrei no mar. Nunca me arriscava a ir mais longe, tampouco a fazer movimentos bruscos. Achava que o mar era violento. Minha postura era quase sempre estática, a cabeça voltada para a praia, para as outras pessoas. Sentia-me sem proteção. Algo parecido me acontece agora.

Faço de minhas mãos e pés remos e, em movimentos rápidos, empurro a água para trás, com o objetivo de ir adiante. Vejo um vulto escuro e irregular, que reconheço à medida que vou me aproximando. É a mesma rocha de que saltei há pouco.

De repente, quase que involuntariamente, lanço minha cabeça para fora d'água. A luz do sol ofusca a minha vista, que aos poucos se torna nítida. Não há ninguém por perto, só um pequeno pesqueiro que se afasta da praia. Respiro, finalmente, aliviada.

Volto todo o meu corpo para a água. Aliviada? Já não tenho tanta certeza, quando entro novamente naquela imensidão. Mas, às vezes, acho que gosto dessas situações divisoras. O perigo e o medo nos despertam e nos fazem seguir adiante.

Ultrapassando fronteiras - é assim que me sinto agora, a cada passo pensado, cada movimento sentido. Logo a tensão diminui e consigo recuperar a agilidade. Percebo que não há nada a temer.

Penso na vida lá fora. Será a mesma quando eu sair daqui? A cobrança no trabalho, a competição na faculdade, a busca por certezas, respostas e sucesso a qualquer custo. Aqui, não. Poderia ficar no mar para sempre, nunca ficaria entediada.

Liberdade. Acho que é isso que o mar me traz. Mas não seria uma ilusão? Os objetos desfocados, a lentidão dos movimentos, a ausência de som. Não consigo acreditar nas coisas que passam por mim, no que vejo, no que toco. É como se eu estivesse sonhando. Muito fácil me perder nessa ausência de realidade.

Meus movimentos ganham força e tenho vontade de ir cada vez mais longe. Vou me afastando da costa. Meus pés já não podem alcançar o chão.

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