quarta-feira, 30 de abril de 2008

Caminho de casa

Olha lá, a Dona Angélica chegou. Achei que hoje ela não entraria neste ponto, afinal é quinta-feira, quando ela costuma sair mais cedo do trabalho. É o dia de fazer as unhas, dois quarteirões acima da biblioteca, onde então toma o ônibus. Pela sua cara, teve que fazer algum trabalho urgente para o chefe e não pôde cumprir sua rotina. Vai se sentar ao lado do Pedro, que também não está com cara de muitos amigos. Acho que está quase desistindo da faculdade, quer mesmo é trabalhar com um táxi. Olha só como ele observa a fila de motoristas parada ali na esquina!

Até agora ninguém se sentou comigo... Já vi tudo. Vou ter que agüentar o Marquinho, aquele mauricinho que volta pra casa, depois do cursinho de inglês, ouvindo músicas no maior volume. Não disse, lá vem ele... Mas que estranho, ele está sem os fones de ouvido e parece tão triste... E olha lá, se sentou com a Clara, que, tenho certeza, não viveu nada de extraordinário hoje. A vida da Clara é como o nome, pálida.

Todos os dias, sei que vou encontrá-la neste mesmo horário, pouco antes de o ônibus passar. É ela sempre a última a se levantar do banco da rua, enquanto todos os passageiros se digladiam para entrar no veículo. Ela não, parece não ter pressa. Entra e senta calmamente, e fica a viagem toda olhando para a janela, sem conversar com ninguém. A monotonia é tanta, que nunca descobri em qual ponto ela desce! Até tento reparar nas suas ações (ou na ausência delas) e, sem querer, me distraio com outra coisa... E aí, meu bem, já é tarde, ela já foi embora para sua vidinha morna. Clara, sim, não há outro nome para ela.

Achei que eu fosse ficar sozinha, mas não, vou ter que aturar o Seu Bebeto, que acabou de passar a roleta. Esse aí eu conheço. Vive puxando assunto com quem quer que esteja ao lado, na frente, até com o trocador... Comigo, a conversa é a mesma: “Ouviste falar em veranico?” Não, na primeira vez, eu realmente não fazia idéia. Mas, na maioria das vezes, eu balanço a cabeça e abro um sorriso simpático, de quem está muito curiosa por saber sobre esse “fenômeno climático de estiagem, responsável por esse calor do cão!” “Calor-do-cão”, ele repete, antes mostrar os dentes amarelos com uma risada maliciosa, de quem tem muito a ensinar para moças jovens e inocentes, como eu.

Decidi que seria “Seu Bebeto” hoje. Antes eu o chamava de Seu Jorge, mas depois daquele cantor, fica difícil criar uma vida de velho galanteador de jovenzinhas. Bebeto não, Bebeto combina... Enquanto penso nisso e rio das minhas invenções, ele continua a reclamar da temperatura. Mas são só alguns minutos, logo ele se vira para outra pessoa. Seu Bebeto faz muita questão de novas amizades.

Na minha frente, senta um casal de namorados. Muito agarrados, eles falam baixinho e se beijam calorosamente — daqueles beijos bem estalados que me dão arrepios só de ouvir. Do reflexo da janela, posso ver o rosto deles, ela com a cabeça no ombro do rapaz, com um sorriso imenso e constante, como se nela não coubesse tanta felicidade. Isso transbordava em seu olhar, perdido em todos os lugares, sem alcançar nenhum. Deve ser namoro recente, quem sabe o primeiro amor...

Sim, era o primeiro amor. E Ana, como ela se chama, parece ser o tipo que acredita no príncipe encantado, no amor para toda a vida. Logo se vê, pelo cabelo comprido, partido ao meio, e o vestido florido, muito simples. É de uma simplicidade de moça do campo.

Poderia ser Ana, Maria, Márcia ou qualquer nome de gente comum. Mas ele, com certeza, era Cláudio... Um tipo que parece comum e inofensivo à primeira vista, mas no fundo, é prático, obstinado e tem lá suas ambições. Homem simples também, mas que — nem mesmo ele sabe — pode ser capaz das piores crueldades. Como quebrar o coração de uma Ana...

Talvez Marquinho esteja triste porque gosta de Ana e não suporta mais vê-la com Cláudio. Quem sabe uma verdadeira ciranda, em que Bernardo goste de Ana, que gosta de Cláudio, que se interessa por Clara... Mas não, terminaria cedo. Clara não se interessa por ninguém.

O engraçado é que, por mais que eu evite, esse meu quebra-cabeça sempre se volta para minha pálida e silenciosa colega de lotação. Ainda não tive ânimo de inventar sua história, mas ela aparece em todos os meus enredos. Talvez seja isso, o que eu não consigo enxergar, na figura mais difícil de caricaturar dentro deste ônibus. Se eu resolvesse apontar, poderia dar a minha versão para a vida de cada um dos que me acompanham nesta viagem. Mas Clara, não: é tão pálida quanto impenetrável.

Da janela, vejo os carros parados no trânsito pesado do fim de tarde. Algumas pessoas viajam sozinhas. Outras têm companhia e conversam para se distrair. Já outras permanecem inertes, mesmo com outras pessoas ao lado, tomadas pelo cansaço do dia. Ou pelo cansaço do outro, talvez. Meu maior desejo é poder ouvir o que se fala dentro dos carros. Não, não, essa minha mania já está indo longe demais. Só que, com um trânsito desses, sei posso ficar horas e horas inventando histórias com os personagens da vida.

Mas o que é aquilo? Marquinho diz algo e tão perto do ouvido de Clara que, tenho certeza, ela sentiu um arrepio na nuca. Eu senti. É a primeira vez que alguém fala com ela em todo esse tempo. É a primeira vez que Marquinho se dirige a alguém. Será que ela vai responder? O que será que ele disse? Se tivesse apenas perguntado as horas, não seria tão próximo. Se fosse alguma tentativa amorosa, ela reagiria. REAJA! Quando percebi, havia gritado. E todos no ônibus olhavam para mim. Menos ela. Ou não?

Ela vira o rosto para Marquinho, meio que sem entender o que ele conta, depois pára para pensar e... Olha para mim. Olha para mim? Meu Deus! Eu me perco tanto nessas observações de pessoas, que nem mais tenho o cuidado de disfarçar! Viro rapidamente para janela, para despistar... Não adianta. Ela já percebeu minha indiscrição.

De repente, Clara se despede de Marquinho, levanta e vem em minha direção... Vem tirar satisfações! Ai, tá vendo, é isso que dá ficar bisbilhotando a vida dos outros. Mas eu nem faço isso, eu invento histórias, o que é que tem isso? Já tentei ler livros ou ouvir músicas... Mas não dá, as pessoas sempre roubam minha atenção. Como explicar isso para ela agora?

Ela vem até mim, minha barriga gela. Antes que ela pergunte, é melhor falar logo: “Clara... digo, você, eu não sei o seu nome, mas tenho te observado, sei lá, sua vida é tão simples, tão vazia, sabe? Como a minha. É isso, como a minha vida...”

Calo-me angustiada quando vejo que todos me olham, alguns riem, outros sentem pena... Talvez me achem uma “Clara”. Ela, por sua vez, reage diferente: me olha assustada, como quem não entende nada, e sai correndo do ônibus, como... era o que ela queria fazer desde o início...

Depois dessa, melhor sentar e voltar para casa. Mas sem imaginação por hoje.

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