quarta-feira, 12 de março de 2008

Em busca da verdade interior (Parte 1)

Onde estou? Meu Deus, quantas caixas! Tem de todas as cores! Umas são grandes, outras pequenas, algumas diminuem e aumentam de tamanho até ficarem gigantescas... Ai! Agora estão caindo, me apertando contra outras. Estou sendo esmagada! Socorro! Não tenho para onde fugir... Tudo vai explodir! Aaaaaaaahhhh!

Já era a quinta vez que Sônia tinha esse sonho. Ela é um ratinho no meio de uma confusão de formas geométricas. E pior, tem a impressão de que pensa como um ratinho, seja lá o que isso queira dizer. Em alguns momentos, até tem consciência de que está sonhando, mas, em outros, vem a sensação de que tudo vai explodir a qualquer hora. Desde a primeira vez, achou estranho sonhar com tal coisa, mas nunca tinha parado para refletir sobre o assunto. Porém, nessa noite, ficou especialmente curiosa. Havia de existir alguma explicação para aquilo.

Pegou um livrinho que sua irmã guardava na gaveta de seu criado mudo: Dicionário dos sonhos. Sempre soube que ele estava ali, mas nunca tinha tido vontade de abri-lo antes. Foi direto ao índice. Letra R... Ratazana! Não é bem isso, mas vá lá. Página 323. “A imagem de ratazanas percorrendo túneis pode ser ao mesmo tempo fálica e anal.” Ahn? “Quem sonha pode estar sentindo culpa ou desconforto em relação à sexualidade, ou mesmo uma paixão reprimida.”

Mas como assim? Eu tenho namorado, estamos até pensando em nos casar... Não tenho curiosidades com essa coisa de mulheres, até porque já vi que não gosto. Experimentei duas ou três vezes, sendo que em uma delas eu estava bêbada... Deixa pra lá. E essa coisa de fálica e anal? Credo, deixa o Pedro ouvir isso, vai dizer que tem uma explicação perfeita e um modo de resolver...

Mas e as caixas? Deixa ver... Hum, página 125: “Suas cores querem dizer uma surpresa agradável ou desagradável”. Ótimo, começamos bem. “Abundância se estão cheias, pobrezas se estão vazias”. Mas e se nos comprimem? Não diz... “Se tiver espelhos, nos indica que algo vai acabar bem, ou mal”. Ok, as caixas não significam nada...

Cansada e confusa, Sônia esqueceu o assunto até o fim do dia. Aliás, lembrou só de comentar com uma colega no trabalho que disse que ela devia se cuidar porque é batata, sonhar é um aviso do inconsciente e aprender a explicar os sonhos é mais útil que fazer terapia... Será? Na hora de dormir, Sônia decidiu que ia se concentrar no ratinho, para ver se o sonho se repetia... Adormeceu sem perceber e dessa vez o roedor estava dentro de uma caixa grande, metálica, fria, parecia em movimento... Era um elevador! E estava ficando cada vez mais apertado, as paredes estavam cada vez mais próximas... Droga, vou ser esmagada!

Acordou. Era sempre assim. No clímax da situação, o susto acabava fazendo com que Sônia voltasse à consciência. Olhou as horas, eram duas e dois. Nossa! Que horário mais enigmático para a interrupção do sonho! Sônia se sentia em meio a um monte de informações importantíssimas para o rumo que sua vida iria tomar dali pra frente. Lembrou-se do que havia dito a colega e tratou de anotar tudo o que lembrava do último sonho, com o máximo de detalhes possíveis. De toda forma, precisaria de alguém mais experiente para analisá-los...

Ao pesquisar sobre o assunto na internet, descobriu um site elaborado por ‘analistas de sonhos’, que falava da importância de se deixar um lápis e um bloquinho sempre na cabeceira da cama, além de um abajur, que evitasse a utilização de uma iluminação muito intensa. Tudo isso colaboraria para que as informações não se perdessem até a transcrição completa do sonho. Esse site era mesmo um achado! E mais: fuçando seus diversos links, Sônia acabou encontrando um jeito de enviar seu próprio sonho para ser analisado por eles! Não podia deixar de ficar eufórica...

Foi direto ao assunto: “Olá. Todas as noites me transformo em um rato. E sou perseguida por diferentes objetos. Caixas, elevadores, todos sempre me comprimindo. Preciso de ajuda! Obs.: não tenho problemas com a minha sexualidade. Obrigada.” Ao clicar para que a mensagem fosse enviada, Sônia teve a sensação de estar se desnudando. Aproveitou que estava conectada e foi checar seu e-mail. Quem sabe a perseguição das caixas não tinha causa no volume de mensagens não lidas?

Não se passaram dez minutos desde que Sônia enviara o depoimento, ela voltou ao site. Para sua surpresa e constrangimento, seu texto era o primeiro na página, sem uma única edição. E a resposta era não menos desconcertante. “Sônia precisa lidar com os excessos em sua vida. Ser perseguida e sentir-se inferior ao agressor é estar acuada em suas atividades cotidianas. Ser um rato aponta para um complexo de inferioridade e uma tendência a reprimir seus impulsos sexuais.”

Quantas vezes vou ter que dizer que não tenho problemas com o sexo? Mas, é verdade, andava mesmo oprimida por tantas tarefas. Agora, por exemplo, seu telefone já registrava cinco chamadas não atendidas que, com certeza, eram do escritório de advocacia onde era estagiária.

Academia, estágio, faculdade e aula de canto. Todos os dias eram a mesma coisa. Nos fins de semana, se apresentava junto ao coral de que fazia parte. A vida de Sônia era mesmo muito agitada. Mas a hora do café da manhã era sagrada. Era o momento em que se dava ao luxo de assistir um pouco de televisão, para não ficar completamente alienada do mundo. Afinal, é a mídia quem dita o que é relevante e o que não é. Se estivesse por fora, não teria assunto com ninguém!

Em certa manhã, Sônia estava zapeando quando teve a sorte de parar em um canal num momento decisivo! Um senhor de mais ou menos 60 anos, cabelos brancos, se despedia do telespectador após um programa sobre ‘O sentido da vida’ e terminava, bastante sorridente, com a seguinte chamada: “Tem gente que vive para o trabalho. Não tem outro assunto e não faz outra coisa. E é para essas pessoas que o consultor comportamental promete dar uma força na próxima sexta-feira.” E não era uma pessoa qualquer não! Além de ‘terapeuta’, ele era deputado federal!

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