quarta-feira, 19 de março de 2008

Hipnose

Luiz Cláudio acordava todos os dias, religiosamente, às 06h35 da manhã. Levava seis minutos entre se levantar, escovar os dentes e entrar para o banho, em que sempre gastava exatos oito minutos. Depois de vestir seu uniforme e sapatos em quatro minutos e meio, sentava-se à mesa do café, onde sempre havia bolachas, leite, chá e uma maçã. Claro, com prazo para se alimentar: dez minutos.

Tudo cronometrado, às sete horas, três minutos e meio, saía de casa a caminho do mesmo ponto de ônibus, onde estavam as mesmas pessoas, para tomar a mesma condução. Para ele era um prazer e um conforto avistar os conhecidos rostos, ter certeza de que tudo corria igual. Não que Luiz Cláudio conversasse com alguém ali, mas era bom sabê-lo. Ele então se sentou, no lugar costumeiro. Em 75 segundos o ônibus passaria. Mas não passou.

Luiz olhou para os lados e reparou na expressão tensa das pessoas. Elas pareciam perceber, assim como ele, a crise que se anunciava. Voltou o olhar novamente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros giravam em uma velocidade exorbitante e terminaram por deixá-lo completamente tonto. Fechou os olhos por um momento a fim de se recuperar e piscou várias vezes antes de abri-los de novo.

Quando se sentiu finalmente desperto, tentou ocupar sua visão com alguma paisagem estável e distante. Aproveitou para focalizar o final da rua de onde deveria chegar o veículo esperado. Afinal, se o tempo realmente estivesse passando mais depressa do que de costume – como denunciavam os ponteiros de seu relógio – mais chances existiam de o ônibus estar próximo dali.

Foi nesse contexto que o rapaz avistou uma grande e escura ave que rodeava um dos bueiros daquela rua. Luiz Cláudio nunca tinha visto nada semelhante dentro da cidade. O bípede de cauda longa e arredondada despertou seu interesse de tal forma, que Luiz pôs-se a caminhar em sua direção, aproximou-se e passou alguns minutos imóvel diante da ave, tentando imaginar o que ela procurava lá dentro.

Talvez um pouco fora de si, o rapaz abriu a tampa do bueiro e, sem nenhuma explicação evidente, lá entrou, acompanhando o animal. Entretido com aquela descoberta, Luiz Cláudio nem mais se preocupava com horários. Além disso, temia que acontecesse algo semelhante, ou até pior, à última vez em que consultou as horas. Era tamanho o seu envolvimento, que também nem se importava com o cheiro ruim e a relativa escuridão do lugar. Simplesmente seguia a ave.

E Luiz observava tudo. Estava tomado por uma curiosidade incomum, principalmente para alguém que nunca foi de observar nada além dos ponteiros dos muitos relógios que tinha. Chamava a sua atenção cada entulho deixado no bueiro, a maneira como a água escura corria... Às vezes tinha vontade de tocá-la. Passaram-se horas e Luiz Cláudio continuava caminhando junto ao estranho animal.

Passou por um grande bueiro de onde pôde ver que já estava começando a escurecer lá fora. Foi quando, pela primeira vez, pensou em voltar para casa. Levaria seu relógio de pulso ao conserto e voltaria à sua rotina habitual. Porém, como se percebesse as intenções do rapaz, a ave começou a fazer um barulho estranho e a se mexer de maneira desordenada. Rodopiava tanto, que começou a jogar água em Luiz. Ele se sentiu enojado e ao mesmo tempo encantado, porque teve finalmente oportunidade de sentir a água, sua temperatura e odor. Olhou em volta, escolheu a poça mais funda e se sentou.

Com a água turva, quente e mal cheirosa à altura de seu umbigo, Luiz se divertia como uma criança que faz algo proibido. Na verdade, sentia-se como a Alice na toca do coelho branco de olhos cor-de-rosa que leva um relógio no bolso. Só que, no caso, o dono do túnel era uma ave e o atrasado era ele. Ao fazer tal comparação, Luiz riu alto, o que deixou sua nova amiga extremamente agitada. A ave, que até então esperava pacientemente o descanso de Luiz para seguir caminho, começou a andar em direção à escuridão.

A princípio, Luiz não se moveu, pois estava muito cansado. A luz exterior, já fraca, ainda atravessava os furos da tampa do bueiro, o que lhe permitia enxergar alguns metros de distância. Quando a luminosidade finalmente acabou e Luiz Cláudio já não conseguia avistar o animal, achou prudente levantar-se para procurá-lo. Depois de muitos passos sem nenhum sinal da ave, uma leve preocupação perturbou Luiz, que olhou mecanicamente para o seu relógio de pulso. Os ponteiros ainda giravam insessante e desordenadamente e provocaram uma nova tontura no rapaz.

Logo que voltou a si, Luiz Cláudio carregava uma sensação nova, de uma asfixia desesperadora. Cambaleante, tentou voltar por onde havia caminhado, mas àquela altura era incapaz de enxergar o que fosse. Estava imerso em um mal cheiroso buraco negro. A absoluta escuridão e o silêncio, apenas interrompido pelo correr da água, angustiavam Luiz Cláudio, que começou a cogitar que aquilo tudo fosse imaginação sua. Talvez nunca tivesse visto o tal animal e tudo não tivesse passado de fantasia. Porém, tudo indicava que estava mesmo ali, encharcado e preso no esgoto de sua cidade. Respirou fundo o quanto pôde e criou coragem para seguir em frente.

Luiz tentava, em vão, abrir a tampa dos bueiros que identificava. Gritava por socorro, mas tudo o que ouvia era um repetido eco que ressoava pelo imenso túnel. Sentou-se, pois, embaixo de um bueiro. A fome e a sede que já o acompanhavam ficaram ainda mais fortes. Para distraí-las, Luiz decidiu cochilar um pouco. Acordou com o som de passos próximos ao local onde estava. Gritou o mais alto que pôde, até que uma senhora de idade – não entendendo bem o que se passava – ligou para os bombeiros, que, em pouco tempo, resgataram o rapaz.

Na manhã seguinte, o movimento habitual em nada fazia lembrar o que se passara no dia anterior. Até mesmo no ponto de ônibus que Luiz Cláudio costumava freqüentar, tudo estava igual. O veículo, que antes deixou a todos esperando, passou no horário exato e o dia seguiu normalmente. Ao cair da noite, com a rua vazia e silenciosa, saltou, de dentro do bueiro, a ave. Saiu, negra e vistosa como antes, e ruidosamente voou para longe dali.

2 comentários:

Sílvia Amélia disse...

Gente, acabei de conhecer o blog. Li tudo de uma vez, é muito bom! Continuem escrevendo.

Anônimo disse...

Que bacana isto em? Surreal, algo assim... Psicanalítico... do mundo dos sonhos, aquele mundo escondido nas profundezas do inconsciente. Parabéns!!!

leia também:

Olhos mortos de sono, é um conto do A. P. Tchekhov.

Grande Abraço Ligia.

Tibira